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COLUNISTAS

A Vice-Versa: Ter um estúdio é desdobrar fibra por fibra

03/05/2021 - 13:34h
Atualizado em 06/05/2021 - 14:45h

 

Foto: Rubens B. Campo / Revista Música / Editora Imprima

 

Corria o ano de 1974. Eu e Guarabyra havíamos acabado de lançar nosso primeiro disco em dupla - o Nunca - e ainda cicatrizava em mim a decepção da saída de Zé Rodrix do agora extinto trio Sá, Rodrix & Guarabyra. Eu voltara a morar no Rio, depois que um rigoroso inverno paulistano decretara a inadaptação de meu recém-nascido primeiro filho ao clima local. Guarabyra permanecera em São Paulo e armava agora com os inesquecíveis Rogério Duprat e Luiz Augusto Botelho a fundação de um estúdio  state of the art, com – imaginem, na época! – uma sala de 16 canais e outra menor que aproveitaria a mesa de 4 canais da já quase falecida Pauta, estúdio que originara nossa mudança para Sampa. Mas o plano ambicioso não parava por aí: incluía a compra de uma casa em Pinheiros, em cujo quintal seria erguido o bloco de concreto que seria o estúdio propriamente dito.

 

 

Tudo isso feito e ajustado, como resistiria eu ao canto de sereia de ter um estúdio próprio, ambição – numa época onde montar um aparato desses significava uma boa grana investida – de dez entre dez músicos. Pra resumir: entre a compra e a montagem, ficamos reféns de uma dívida próxima a um milhão de dólares, que conseguimos milagrosamente quitar em menos de dois anos, à custa de centenas de jingles bem-sucedidos, o que em contraponto nos custou negligenciar a carreira da dupla e atrasar nossa recuperação até 1977, quando o Pirão de Peixe com Pimenta – a reboque do sucesso de Espanhola e Sobradinho - nos levou de volta ao topo das paradas de sucesso. O outro preço foi a saída de Guarabyra da sociedade, insatisfeito com a dedicação à propaganda que a dívida nos exigiu.

 

Fui resiliente e entre idas e vindas Rio-São Paulo consegui me manter na sociedade. Deus sabe o quanto odiei – ou adorei - ter que passar dias e noites compondo jingles de todos os tipos, tamanhos e notas. Por outro lado, tinha à minha disposição um estúdio top de linha, com os fantásticos operadores de áudio que Luiz Botelho escolhia a dedo e educava com rigor e paciência. Além disso, gravava numa sala onde caberia com folga uma Sinfônica completa. Sem falar no privilégio de conviver com o maestro Rogério Duprat e seus arranjos, que levaram nossos discos a outro patamar de qualidade.

 

E agora, exponho minha dor: da sociedade original, restamos eu e Vanderlei Rodrigues, diretor financeiro desde sempre. Rogério, Luiz e Fernando Ribeiro – que comprara a parte do maestro – já se foram pro esquema esotérico que a todos nós espera. Não satisfeito com isso, o destino nos reserva agora a demolição da nossa casa, do nosso lar, daquela caprichada construção dos anos 40, que em suas grossas paredes, entre aquelas portas e janelas em legítimo pinho de Riga, guardava nossos melhores sonhos, nossas mais interessantes alternativas expostas por angustiantes dúvidas, enquanto lidávamos com aquele estranho mundo capitalista que se apresentava nu e cru àquela meia dúzia de artistas que queriam, de algum modo, crescer e manter sua arte em evidencia.

 

Agora, tapumes de alumínio escondem a destruição de um ícone da minha vida. Não irei lá ouvir o ruído das marretas e das escavadeiras. Dentro daquela casa passei uns bons vinte anos da minha vida. Nela compus e gravei dezenas, centenas talvez, de canções que me fizeram crescer e entender melhor quem eu era e o que eu seria capaz de fazer.

 

Sem a Vice Versa eu seria certamente uma pessoa diferente, não sei se melhor ou pior, não me interessa. Experiências dessa amplitude fazem de você o que você é de verdade. Ali fui patrão, empregado, arranjador, cantor, instrumentista, improvisador, enrolador, dono e escravo da bola, fui de tudo enfim. Sem a Vice eu seria hoje, com certeza, um ainda inexperiente.

 

Anos atrás, sem outros recursos e assolados pelo atropelamento tecnológico que fez do nosso sonho um elefante branco, eu e meus dois sócios restantes vendemos tudo para a gravadora Trama, que por sua vez vendeu recentemente a casa a uma construtora. Mas, mesmo demolida essa mansão de algum capo do café dos anos 30 e o portentoso estúdio de concreto com forro de lã de vidro, minha História – e a de dezenas de outros amigos, tenho certeza - estará sempre ligada ao endereço da Alves Guimarães, 170.

 


Já na fase trama: Emicida no programa Trama Radiola (reprodução).

 

 

Então, preparem-se, condôminos do futuro prédio: no mais profundo dos seus sonhos soarão os arranjos de Duprat, a voz de Ellis, o rouco dos últimos tempos de Raul. E coroando isso tudo, vocês de repente poderão acordar com um sussurro no ouvido, uma longínqua voz cantando assim:

 

-“Vem pra Caixa você também. Vem!”

 

 


 

Casa de sons e sonhos

Por: Guarabyra 

 

A coluna de Sá sobre a Vice-Versa despertou as lembranças afetivas do parceiro Guarabyra, que enviou crônica escrita na época da venda do Vice-Versa para a gravadora Trama. Como consequência, temos a primeira coluna da dupla Sá & Guarabyra. Confira!

 

 

 

Quando encontrei David Zing, em 1974, às duas da manhã, no Rio, e  solicitei informações sobre o mercado de trabalho em São Paulo, não sabia  o que o futuro me reservava. Ao saber que estava disposto até mesmo a  fazer jingles de propaganda para dar uma reviravolta na vida, apresentou a notícia: o maestro Rogério Duprat estava metido com publicidade e labutava nisso num pequeno estúdio na Major Quedinho. Ora, se havia alguma pessoa no mundo com a qual eu trabalharia no que fosse, esta era Rogério Duprat.

 

 

No dia seguinte, telefonei para Duprat que me saudou com uma resposta positiva no ato. Depois de convencer meus dois parceiros, Sá e Rodrix, de que deveríamos nos mudar urgentemente, embarcamos para Sampa quinze dias depois. Foram dias de glória. Ganhamos todos os tipos de prêmio da propaganda, nacionais e internacionais, naquele ano e nos anos seguintes.

 

 

Meses depois, já com a nova vida plenamente estabilizada, comentei com o Maestro (como passei a chamá-lo) que meu grande sonho, e cuja frustração era a razão principal de minha fuga do Rio, consistia em construir um estúdio que tivesse a mesa qualidade dos que serviam às gravadoras e que permitisse aos músicos independentes gravar com a mesma infraestrutura daqueles que trabalhavam sob contrato. Ora, este era também o sonho dele!

 

 

Pusemo-nos pois em campo para arranjar o dinheiro. Resolvemos que utilizaríamos a partir daquela data todo o dinheiro dos jingles, que excedesse à renda necessária para sobreviver, apenas para construir o sonho. E conseguimos. Dando como garantia os imóveis de um dos sócios, Luiz Arruda Botelho, conseguimos financiamento e compramos o sobradão simpático da Alves Guimarães. Quando as prestações atrasaram, saímos do sufoco com a ajuda providencial de Idel Pascowitch, e seguimos em frente.

 

 

Passaram pela casa da Alves Guimarães — criteriosamente trabalhada para ser o melhor estúdio da época, tanto em material técnico como no tratamento humano dos artistas — desde Hermeto Pascoal, que fez ali seu disco de apresentação nos Estados Unidos, até o iniciante Grupo Corpo, cuja trilha de um de seus primeiros balés, composta pelo inesquecível compositor mineiro Marco Antônio Araújo, foi inteiramente gravada lá.

 

 

Naquele momento vislumbrei que em breve poderíamos não só gravar os artistas como também fundar uma gravadora/distribuidora de discos. O sonho foi reforçado quando Marcus Pereira, também inesquecível, fechou o bar e fortaleza da MPB em Sampa, Jogral, e produziu em nosso estúdio uma das mais fantásticas coleções de discos da música popular brasileira.

 

 

O sonho porém acabaria logo, quando os demais sócios decidiram que não valia a pena investir em novos (e velhos) talentos. Como não conseguia conceber que tivesse feito tudo aquilo apenas para faturar com publicidade, caí fora. Duprat sairia em seguida. No entanto, depois de muitos anos sem atividade verdadeiramente artística, a gravadora Trama comprou o casarão e hoje o está povoando novamente de sons. Estou certo de que cada janela, porta, parede e espaço acústico do velho sobrado está agradecido a quem trouxe de volta o ambiente de sons e sonhos para o qual foi carinhosamente preparado.

 

 

 

 

 

A Vice-Versa: Ter um estúdio é desdobrar fibra por fibra
Luiz Carlos Sá

COMENTÁRIOS

O capacitor envelhece em um equipamento pouco usado também? Ou ele degrada principalmente com o uso? Por exemplo, um equipamento da década de 80 muito pouco usado precisaria de recap por desgaste do tempo?

- Henrique M

Ótimo, vai ajudar muito! Cesar é fantástico, ótima matéria!

- adriano vasque da

Saudades da Paranoia saudável que tínhamos no Freeeeeee Jazzzzzz Festival (imitando Zuza em suas apresentações magnificas) Parabéns Farat Forte abraço

- Ernani Napolitano

Artigo incrivel! Extremamente realista e necessário, obrigado mestre!

- Jennifer Rodrigues

Depois de 38 anos ouvindo o disco, eis q me deparo com a história dele. Multo bom!! Abrss

- Fernando Baptista Junqueira

Que maravilha de matéria, muito verdadeira é muito bem escrita, quem viveu como eu esta época, só pode agradecer pela oportunidade que Deus me concedeu. Vou ler todas, mas tinha que começar por esta… abraços…

- Caio Flávio

Só li verdades! Parabéns pela matéria Farat

- Guile

Ótimo texto Zé parabéns !!!!! Aguardando os próximos!!!

- Marco Aurélio

Adoro ver e rever as lives do Sá! Redescobri várias músicas da dupla valorizadas pela execução nas "Lives do Sá". Espero que esse trabalho volte de vez em quando. O Sá, juntamente com o Guilherme Arantes e o Tom Zé, está entre os melhores contadores de casos da MPB. Um livro com a história da dupla/trio escrito por ele seria muito interessante!

- Bruno Sander

Ontem foi um desses dias em que a intuição está atenta. Saí a caminhar pela Savassi sabendo que iria entrar naquela loja de discos onde sempre acho algo precioso em vinil. Já na loja, fui logo aos brasileiros e lá estavam o Nunca e o Pirão de Peixe em ótimo estado de conservação, o que é raríssimo. Comprei ambos. O 2º eu já tinha, meio chumbado. O Nunca eu conhecia de CD, e tem algumas das músicas que mais gosto da dupla, p. ex. Nuvens d'Água (acho perfeita), Coisa A-Toa (alusão à ditadura?), e outras. Me disseram que o F. Venturini é fã do Procol Harum, e realmente alguns solos de órgão dele fazem lembrar a banda inglesa.

- João Henrique Jr.

Que maravilha de matéria. Me transportei aos anos de ouro da música brasileira

- Sidney Ribeiro

Trabalho lindão. Parabéns à todos os envolvidos!

- Anderson Farias de Melo

O que dizer do melhor disco da música nacional(minha opinião). Tive o prazer em ver eles como dupla e a volta como trio em um shopping da zona leste de sampa. Lançamento do disco outra vez na estrada. Espero poder voltar a vê-los novamente, já que o Sa hoje mora fora do Brasil. E essa Pandemia, que isolou muito as pessoas. Obrigado por vocês existirem como músicos, poetas e instrumentistas. Vocês são F..., Obrigado, abracos

- Luiz antonio Rocha

Que maravilha Querido Paulinho Paulo Farat!! Obrigado por dividir conosco momentos tão lindos , pela maravilha de pessoa e imenso talento que Vc sempre teve, tem e terá, sempre estará no lugar certo e na hora certa ! Emocionante! Tive a honra de trabalhar muitas vezes com Vc, em especial na época do Zonazul , obrigado por tudo, parabéns pela brilhante carreira e que Deus Abençõe sempre . Bjbj

- Michel Freidenson

Mais uma vez um texto sensacional sobre a história da música e dos músicos brasileiros. Parabéns primo e obrigado por manter viva a memória dessas pessoas tão especiais para nós E vai gravar o vídeo desta semana! Kkkk

- Carlos Ronconi

Grande Farat!!! Bacana demais a coluna! Cheio de boas memorias pra compartilha!!!

- Luciana Lee

Valeu Paulo Farat por registrar nosso trabalho com tanto carinho e emoção sincera. Foram momentos profissionais muito importantes para todos nós. Inesquecíveis ! A todos os membros de nossa equipe,( e que equipe! ) Nosso Carinho e Saudades ! ???? ???????????????????? Guilherme Emmer Dias Gomes Mazinho Ventura Heitor TP Pereira Paulo Braga Renato Franco Walter Rocche Hamilton Griecco Micca Luiz Tornaghi Carlão Renato Costa Selma Silva Marilene Gondim Cláudia Zettel (in memoriam) Cristina Ferreira Neuza Souza

- Alberto Traiger

Depois de um ano de empresa 3M pude fazer o bendito carnê e comprei uma vitrolinha (em 12X) e na mesma hora levei Pirão, Quatro (Que era o novo), Es´pelho Cristalino e Vivo do Alceu, fiquei um ano ouvindo e pirando sem parar, depois vi o show do Quatro em Campinas. Considero o mais equilibrado de todos, sendo que sempre pendendo pro rural e nem tanto pro urbano, um disco atemporal podendo ser ouvido em qualquer situação, pois levanta o astral mesmo. No momento, Chuva no campo é ''a favorita'', mas depois passa e vem outra, igualzinho à aquela banda de Liverpool, manja????

- Ademilson Carlos de Sá

B R A V O!!! Paulo Farat não esqueça: “Afina isso aí moleque!” Hahahaha Tremendo profissional, sou teu fã, Grande abraço!

- Dudu Portes

Show é sensacional. Mas a s sensação intimista de parecer que a live é um show particular, dentro da sua casa, do seu quarto, é impagável. Parabéns família, incluindo Guarabyra e Tommy...

- Ricardo Amatucci

Paulo Farat vai esta nas lives do Papo Na Web a partir de amanha apresentando "Os Albuns Que Marcaram As Nossas Vidas"" Não percam, www.facebook.com/depaponaweb todas as terças-feiras as 20:00 horas

- Carlos Ronconi

Caro Luiz Carlos Sá, as canções que vocês fazem são maravilhosas, sinto a energia de cada uma. Tornei-me um admirador do trabalho de vocês no final dos anos 1970 com o LP Quatro e a partir de então saí procurando os discos de vocês, paguei um preço extorsivo pelo vendedor, os LP's "Casaco Marrom" do Guarabyra e "Passado, Presente e Futuro" (primeiro do Trio), mas valeu. tenho todos em LP's e CD's até o Antenas, depois desse só em CD's e o DVD "Outra Vez Na Estrada" exceto o mais recente "Cinamomo" mas em breve estarei com ele para curtir. A última vez que vi um show da dupla (nunca vi o trio em palco), foi no Recife no dia 16/04/2016 na Caixa Cultural, vi as duas apresentações. Levei dois bolos de rolo pra vocês, mas o Guarabyra não estava. Quero registrar que tenho até o LP "Vamos Por Aí", todos autografados, que foi num show feito no Teatro do Parque, as apresentações seriam nos 14,15 e 16/10/1992 mas o Guarabyra perdeu o voo e só foram dois dias, no dia do seu aniversário e outro no dia 16. Inesquecível. Agora estou lendo essas crônicas maravilhosas. Grande abraço forte e fraterno e muita saúde e sucesso pra vocês, sempre. P.S. O meu perfil no Facebook é Xavier de Brito e estou lá como Super Fã.

- Edison Xavier de Brito

Me lembro de ter lido algumas destas crônicas dos discos quando voce as publicou no Facebook em 2013, Sá. Muito emocionante reler e me emocionar de novo. Voces foram trilha sonora importantíssima dos últimos anos da minha vida. Sou de 1986, portanto de uma geração mais nova que escuta voces. Gratidão e vida longa a voces!

- Luiz Fernando Lopes

Salve!!! Que maravilha conhecer essas histórias de discos que fazem parte da minha vida. Parabéns `à Backstage e ao Sá! E, claro, esperando a crônica do Pirão. Esse disco me acompanha há mais de quarenta anos! Minhas filhas escutaram desde bebês e minha neta, que vai nascer agora em setembro, vai aprender a cantar todas as músicas!

- Maurício Cruz

com esse time de referências musicais (exatamente as minhas) mais o seu talento, não tem como não fazer música boa!!!! parabéns!!! com uma abraço de um fã que ouve seus discos desde essa época!

- nico figueiredo

Boa noite amigo, gostei muito das suas explicações, pois trabalho com mix gosto muito mesmo e assistindo você falando disso tudo gostei muito um abraço.

- Rubens Miranda Rodrigues

Obrigado Sá, obrigado Backstage, adoro essas histórias, muito bom, gostaria de ouvir histórias sobre as letras tbém, abç.

- Robson Marcelo ( Robinho de Guariba SP )

Esperando ansioso o Pirão de Peixe e o 4. Meu primeiro S&G

- Jeferson

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