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COLUNISTAS

Cartas Portuguesas 2

18/10/2021 - 08:00h
Atualizado em 18/10/2021 - 11:25h

 

Cercado que estou pelo sotaque e pelas parreiras do vale do Minho, berço principal do vinho verde, que experimentei pela primeira vez – e odiei, acreditem! – na minha formatura da então 4ª série ginasial (hoje, meninos, sua 9ª) em Resende, estado do Rio, tenho um flash back/epifania, visto que escrevo isto escoltado por um ótimo Terras de Felgueiras – Grande Escolha, verde que jamais na adolescência pensaria em poder saborear in loco, com absoluto conhecimento de causa. Atenção: não sou um daqueles experts que distinguem pormenores do paladar. Sou guiado apenas pelo prazer que este ou aquele vinho me proporcionam, sem distinção de preço ou origem, contanto que sejam simplesmente muito bons. E aí é que, utilizando uma mui lusitana expressão, a porca torce o rabo, visto que os muito bons dos quais falo podem ser achados em qualquer canto deste país, onde se leva muito a sério esse assunto. E olhem só: em recente reportagem a CNN insurgiu-se contra o injusto papel secundário ao que gastronomia e enologia portuguesas são relegadas no mercado norte-americano, listando um rol de diversificadas delícias sólidas e líquidas que este prodigioso país consegue produzir numa área pouco menor que a do nosso Pernambuco.

 


Mas voltemos lá à Resende dos anos 60. Eu, Miguel, Carlinhos e Olhão resolvemos que devíamos comemorar nossa formatura com um plus, claro que regado a alguma travessura, travessos que éramos... Combinamos de véspera um assalto – um tanto modesto, mas assalto – aos bares paternos, no meu caso, fraternos, visto que eu, adolescente revoltado, saíra de casa e do domínio de uma mãe superprotetora de seu único filho para morar com minha irmã mais velha e meu cunhado. Ele, capitão-instrutor de infantaria servindo na Academia Militar, ela representante Avon, de cuja contabilidade eu acabara encarregado, além de fazer hora extra como baby sitter de meus dois sobrinhos quando o casal saía para o cinema das quintas feiras e sábados. Aprendi a fazer mamadeiras, deitar com eles quando acordavam à noite e contar histórias quando demoravam a pegar no sono. Foi um excelente treino para o pai de cinco que eu me tornaria anos mais tarde e um aprendizado de responsabilidade inédita para o porra louca que eu então tendia a ser. Sem falar do nadador que me tornei no fantástico conjunto de piscinas da AMAN, no que aprendi a montar nos cavalos da fazenda Santa Maria e nos passeios de bicicleta por trilhas ainda mal exploradas das matas próximas aos limites do Parque Nacional do Itatiaia. Nesses tempos inexistia o divórcio entre civis e militares que passou a vigorar depois do golpe de 1964. Éramos ainda felizes  e sem distorções entre nós.
 

 

Então, naquela noite de verão de mil e novecentos e cinquenta e tantos estávamos eu e meus três amigos escondidos na casa de um de nós, não me lembro qual, mas que certamente contava com a ausência dos pais, todos eles majores, tenentes-coronéis ou coronéis, tirando das sacolas o produto do saque da noite. Miguel, um uísque; Olhão, uma cachaça; Carlinhos, quatro cervejas Faixa Azul; e eu, duas das dezenas de garrafas de vinho verde que meus pais traziam para meu cunhado nas costumeiras visitas de fim de semana. Eram Grandjó, lembro bem, porque agora aqui em Portugal eu as vejo como um flash back vivo nos supermercados.  Depois de discutirmos um tempo, resolvemos começar por elas, visto que achávamos as cervejas – vejam só - “amargas demais” para um bom início dos trabalhos. Miguel apareceu com um saca rolhas e em minutos estávamos mais ou menos bêbados. Eu achara minha contribuição lamentável: um líquido verdejo, ácido, sem graça. Mergulhei então nas cervejas de Olhão, que – pouco mais velho que nós – traçava as Faixa Azul com visível prazer. Mas elas também me decepcionaram. Tive então a súbita lucidez de que aquilo não acabaria bem. Nossos pais não tinham ideia de onde estávamos e a coisa toda parecia fora de controle. Carlinhos deitara num sofá e ressonava com gosto. Olhão dançava, desengonçado, ao som do Elvis que rolava na vitrola, enquanto Miguel olhava fixamente para algum ponto na parede. Eu acreditava estar quase lúcido, ao mesmo tempo em que sabia que isso era mentira. E a mentira tornou-se realidade quando olhei pela janela, dia raiando, e vi chegar, mansa e furtivamente, o Oldsmobile Ninety-Eight do meu pai. A princípio, achei que o uísque do Miguel, que eu tomara depois das amargas cervejas do Olhão, estavam me fazendo ver coisas. Mas a saída cinematográfica pela porta traseira de uma mãe descabelada que a custo reconheci ser a minha convenceu-me de que a realidade estava se fazendo presente...


 

            - Filho! – gritou ela, de dentro de sua melhor personagem de uma tragédia grega – você está bem?!
            - Melhor que nunca – respondi, sustentado pela tranquilidade que via em meu pai e meu cunhado, que saíam do carro mal contendo o riso.


 

Em suma, recebi uma leve bronca paterna sobre “avisar antes”, o que na década de 50 era difícil, senão impossível. Minha mãe chorou um pouco, acho que mais para cumprir o papel de mater dolorosa do que uma real preocupação sobre a ausência de um filho na noite de formatura dentro de uma academia militar vigiada 24 horas por dia. Mas valeu o rito de passagem, perfeitamente compreendido por pai, irmã e cunhado que me pouparam maiores encheções de saco.


 

Depois de 64 nossas reuniões familiares viraram discussões políticas. De um lado, eu e um primo psicanalista; do outro, meu cunhado - já então tenente-coronel - e meu primo e padrinho, general. Mas nunca deixamos que nossas opiniões contrárias e ardorosas nos fizessem esquecer do que devíamos uns aos outros, além do parentesco: a amizade e o carinho nascido de anos de convivência familiar, da infância á idade adulta. Foram tempos amargos e contraditórios, de confronto ideológico, mas nos olhávamos de frente e colocávamos alguma coisa – que não percebíamos o que fosse – à frente da tragédia que atingia nosso país e nossa família.
 

 

E hoje, bebericando esse verde com prazer nostálgico e inverso à rejeição daquele primeiro de quase sessenta anos atrás, lembro disso tudo  e penso que o paladar amadurece com a pessoa.

 


                       

Cartas Portuguesas 2
Luiz Carlos Sá

COMENTÁRIOS

O capacitor envelhece em um equipamento pouco usado também? Ou ele degrada principalmente com o uso? Por exemplo, um equipamento da década de 80 muito pouco usado precisaria de recap por desgaste do tempo?

- Henrique M

Ótimo, vai ajudar muito! Cesar é fantástico, ótima matéria!

- adriano vasque da

Saudades da Paranoia saudável que tínhamos no Freeeeeee Jazzzzzz Festival (imitando Zuza em suas apresentações magnificas) Parabéns Farat Forte abraço

- Ernani Napolitano

Artigo incrivel! Extremamente realista e necessário, obrigado mestre!

- Jennifer Rodrigues

Depois de 38 anos ouvindo o disco, eis q me deparo com a história dele. Multo bom!! Abrss

- Fernando Baptista Junqueira

Que maravilha de matéria, muito verdadeira é muito bem escrita, quem viveu como eu esta época, só pode agradecer pela oportunidade que Deus me concedeu. Vou ler todas, mas tinha que começar por esta… abraços…

- Caio Flávio

Só li verdades! Parabéns pela matéria Farat

- Guile

Ótimo texto Zé parabéns !!!!! Aguardando os próximos!!!

- Marco Aurélio

Adoro ver e rever as lives do Sá! Redescobri várias músicas da dupla valorizadas pela execução nas "Lives do Sá". Espero que esse trabalho volte de vez em quando. O Sá, juntamente com o Guilherme Arantes e o Tom Zé, está entre os melhores contadores de casos da MPB. Um livro com a história da dupla/trio escrito por ele seria muito interessante!

- Bruno Sander

Ontem foi um desses dias em que a intuição está atenta. Saí a caminhar pela Savassi sabendo que iria entrar naquela loja de discos onde sempre acho algo precioso em vinil. Já na loja, fui logo aos brasileiros e lá estavam o Nunca e o Pirão de Peixe em ótimo estado de conservação, o que é raríssimo. Comprei ambos. O 2º eu já tinha, meio chumbado. O Nunca eu conhecia de CD, e tem algumas das músicas que mais gosto da dupla, p. ex. Nuvens d'Água (acho perfeita), Coisa A-Toa (alusão à ditadura?), e outras. Me disseram que o F. Venturini é fã do Procol Harum, e realmente alguns solos de órgão dele fazem lembrar a banda inglesa.

- João Henrique Jr.

Que maravilha de matéria. Me transportei aos anos de ouro da música brasileira

- Sidney Ribeiro

Trabalho lindão. Parabéns à todos os envolvidos!

- Anderson Farias de Melo

O que dizer do melhor disco da música nacional(minha opinião). Tive o prazer em ver eles como dupla e a volta como trio em um shopping da zona leste de sampa. Lançamento do disco outra vez na estrada. Espero poder voltar a vê-los novamente, já que o Sa hoje mora fora do Brasil. E essa Pandemia, que isolou muito as pessoas. Obrigado por vocês existirem como músicos, poetas e instrumentistas. Vocês são F..., Obrigado, abracos

- Luiz antonio Rocha

Que maravilha Querido Paulinho Paulo Farat!! Obrigado por dividir conosco momentos tão lindos , pela maravilha de pessoa e imenso talento que Vc sempre teve, tem e terá, sempre estará no lugar certo e na hora certa ! Emocionante! Tive a honra de trabalhar muitas vezes com Vc, em especial na época do Zonazul , obrigado por tudo, parabéns pela brilhante carreira e que Deus Abençõe sempre . Bjbj

- Michel Freidenson

Mais uma vez um texto sensacional sobre a história da música e dos músicos brasileiros. Parabéns primo e obrigado por manter viva a memória dessas pessoas tão especiais para nós E vai gravar o vídeo desta semana! Kkkk

- Carlos Ronconi

Grande Farat!!! Bacana demais a coluna! Cheio de boas memorias pra compartilha!!!

- Luciana Lee

Valeu Paulo Farat por registrar nosso trabalho com tanto carinho e emoção sincera. Foram momentos profissionais muito importantes para todos nós. Inesquecíveis ! A todos os membros de nossa equipe,( e que equipe! ) Nosso Carinho e Saudades ! ???? ???????????????????? Guilherme Emmer Dias Gomes Mazinho Ventura Heitor TP Pereira Paulo Braga Renato Franco Walter Rocche Hamilton Griecco Micca Luiz Tornaghi Carlão Renato Costa Selma Silva Marilene Gondim Cláudia Zettel (in memoriam) Cristina Ferreira Neuza Souza

- Alberto Traiger

Depois de um ano de empresa 3M pude fazer o bendito carnê e comprei uma vitrolinha (em 12X) e na mesma hora levei Pirão, Quatro (Que era o novo), Es´pelho Cristalino e Vivo do Alceu, fiquei um ano ouvindo e pirando sem parar, depois vi o show do Quatro em Campinas. Considero o mais equilibrado de todos, sendo que sempre pendendo pro rural e nem tanto pro urbano, um disco atemporal podendo ser ouvido em qualquer situação, pois levanta o astral mesmo. No momento, Chuva no campo é ''a favorita'', mas depois passa e vem outra, igualzinho à aquela banda de Liverpool, manja????

- Ademilson Carlos de Sá

B R A V O!!! Paulo Farat não esqueça: “Afina isso aí moleque!” Hahahaha Tremendo profissional, sou teu fã, Grande abraço!

- Dudu Portes

Show é sensacional. Mas a s sensação intimista de parecer que a live é um show particular, dentro da sua casa, do seu quarto, é impagável. Parabéns família, incluindo Guarabyra e Tommy...

- Ricardo Amatucci

Paulo Farat vai esta nas lives do Papo Na Web a partir de amanha apresentando "Os Albuns Que Marcaram As Nossas Vidas"" Não percam, www.facebook.com/depaponaweb todas as terças-feiras as 20:00 horas

- Carlos Ronconi

Caro Luiz Carlos Sá, as canções que vocês fazem são maravilhosas, sinto a energia de cada uma. Tornei-me um admirador do trabalho de vocês no final dos anos 1970 com o LP Quatro e a partir de então saí procurando os discos de vocês, paguei um preço extorsivo pelo vendedor, os LP's "Casaco Marrom" do Guarabyra e "Passado, Presente e Futuro" (primeiro do Trio), mas valeu. tenho todos em LP's e CD's até o Antenas, depois desse só em CD's e o DVD "Outra Vez Na Estrada" exceto o mais recente "Cinamomo" mas em breve estarei com ele para curtir. A última vez que vi um show da dupla (nunca vi o trio em palco), foi no Recife no dia 16/04/2016 na Caixa Cultural, vi as duas apresentações. Levei dois bolos de rolo pra vocês, mas o Guarabyra não estava. Quero registrar que tenho até o LP "Vamos Por Aí", todos autografados, que foi num show feito no Teatro do Parque, as apresentações seriam nos 14,15 e 16/10/1992 mas o Guarabyra perdeu o voo e só foram dois dias, no dia do seu aniversário e outro no dia 16. Inesquecível. Agora estou lendo essas crônicas maravilhosas. Grande abraço forte e fraterno e muita saúde e sucesso pra vocês, sempre. P.S. O meu perfil no Facebook é Xavier de Brito e estou lá como Super Fã.

- Edison Xavier de Brito

Me lembro de ter lido algumas destas crônicas dos discos quando voce as publicou no Facebook em 2013, Sá. Muito emocionante reler e me emocionar de novo. Voces foram trilha sonora importantíssima dos últimos anos da minha vida. Sou de 1986, portanto de uma geração mais nova que escuta voces. Gratidão e vida longa a voces!

- Luiz Fernando Lopes

Salve!!! Que maravilha conhecer essas histórias de discos que fazem parte da minha vida. Parabéns `à Backstage e ao Sá! E, claro, esperando a crônica do Pirão. Esse disco me acompanha há mais de quarenta anos! Minhas filhas escutaram desde bebês e minha neta, que vai nascer agora em setembro, vai aprender a cantar todas as músicas!

- Maurício Cruz

com esse time de referências musicais (exatamente as minhas) mais o seu talento, não tem como não fazer música boa!!!! parabéns!!! com uma abraço de um fã que ouve seus discos desde essa época!

- nico figueiredo

Boa noite amigo, gostei muito das suas explicações, pois trabalho com mix gosto muito mesmo e assistindo você falando disso tudo gostei muito um abraço.

- Rubens Miranda Rodrigues

Obrigado Sá, obrigado Backstage, adoro essas histórias, muito bom, gostaria de ouvir histórias sobre as letras tbém, abç.

- Robson Marcelo ( Robinho de Guariba SP )

Esperando ansioso o Pirão de Peixe e o 4. Meu primeiro S&G

- Jeferson

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