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COLUNISTAS

Cartas Portuguesas 5: o cantor no inverno

27/01/2022 - 14:45h
Atualizado em 27/01/2022 - 17:01h

 

Acordei meio que sem saber onde estava. Aos poucos fui tomando consciência e reconhecendo aquela parede, aquele teto, aquela cama, aquele edredom pesado... “Ah” – pensei – “Portugal... estou em Portugal e estamos no inverno”.

 

Esse frio não me é de todo desconhecido. O extremo Norte português e o extremo sul brasileiro têm suas semelhanças e já me vi vezes sem conta debaixo de grossos cobertores em turnês gaúchas, mas a distância da terra natal parece jogar o termômetro mais para baixo ainda. Levanto a custo, embora o aquecimento mantenha o quarto a confortáveis 19 graus, e pego o celular. São dez da manhã. Lá fora deve estar chovendo, é o que o aplicativo me diz, e a temperatura vai subir aos poucos: estão previstos consagradores 10 graus ao meio-dia. Afasto as cortinas e fico um tempo admirando a paisagem invernal. O vento sacode as árvores nuas e o rio que corre lá embaixo pelos fundos do prédio parece me propor um desafio: “venha mergulhar”, ele chama, e eu sinto um arrepio passar-me pelo corpo todo. Mas o rio, apesar de urbano, tem águas tão claras que não vejo estranheza nesse impulso, ainda mais em mim, um ser aquático que - depois de nascido e crescido al mare - foi retemperado pelas frias cachoeiras de Minas.

 

De fato, chove. Uma chuva fina, mas úmida, ventosa, daquelas de encharcar os mais escondidos ossos. Na pista de caminhada que acompanha a margem do rio passam heroicos ciclistas e joggers, todos bem abrigados pelas vestimentas apropriadas desconhecidas por nós, tropicais, mas bem comuns – e indispensáveis – aqui. O cenário acaba por deixar-me nostálgico, lembrando verões em praias semidesertas e cervejas em varandas cariocas, mas logo sigo a sugestão do Gil: o melhor lugar do mundo é aqui e agora. E, acreditem, é mesmo.

 

Moro numa das mais antigas cidades de Portugal, fundada há dois mil anos pelos romanos e por eles chamada de Bracara Augusta. Nem por isso a cidade tem ranço: consegue juntar em harmonia o vetusto das esparsas ruínas do Império de Augusto e o barroco de suas numerosas igrejas à vibração da juventude estudantil que frequenta suas seis universidades.

 

É inevitável também que, morando aqui, não me saiam da cabeça as veryhappy hours passadas na calçada do Bracarense, tradicional boteco carioca do Leblon. Sim, quem nasce em Braga é bracarense e – por que não? – isso também faz com que eu me sinta íntimo desta cidade. Mesmo nesses tempos pandêmicos, armado com vacinas, máscaras e álcool (tanto o etanol 70 quanto o etílico 12 dos deliciosos vinhos verdes minhotos) passeio sempre que possível pelas centenárias ruas estreitas ou por avenidas que me lembram aqueles imensos espaços brasilienses. Contraste é a gente mesmo.

 

Mas voltemos ao quentinho (?) do meu apartamento. Sento no sofá da sala, ligo a TV e tomo um café. Quando da minha chegada, há pouco mais de um ano, tinha alguma dificuldade em compreender o que os locutores falavam. Depois, meus ouvidos foram ficando acostumados, como acostumei-me ao frio, ao rigor das regras de conduta, à aparente dureza de trato (que esconde uma delicadeza contida) do português do Norte e à segurança de poder andar pela cidade a qualquer hora da noite sem me sentir ameaçado por assaltantes. Ah, a televisão... depois do jornal, os programas matutinos. Vejo todos eles, dos documentários aos populares de auditório. Não conheço melhor maneira de entender o povo de um país: em todos os lugares onde passei – e isso inclui as diferentes regiões do Brasil – apliquei o sistema de assistir a TV aberta. Em dois ou três dias no máximo você já tem uma boa ideia do chão onde está pisando.

 

Ainda não consegui ver os grandes artistas portugueses - como Carminho, Madredeus, Ana Moura, Dulce Pontes e muitos outros – nos horários populares da telinha , o que sinaliza que a coisa aqui, em termos de TV aberta, muita semelhança ao que rola aí no Brasil. Qualidade vira elitismo. Isso é um Déjà Vu, nem vou insistir em bater nessa tecla. Esconder o que é bom virou um mantra de marketing que pouco a pouco vai sendo demolido pelo cansaço da mediocridade.

 

Enfim, quase uma da tarde. Hora de preparar o almoço da família, filho que chega da escola pública (sim, pública e de alta qualidade) e mulher que chega da universidade, onde cursa o Mestrado. Aqui descobri que pilotar a cozinha para alimentar meus queridos é um novo prazer, que traz como bônus reforçar nossos laços de família. Pelo menos para isso – no meu caso particular - serviu a maldita pandemia: troquei os anos de ausência doméstica, que passei viajando, por uma presença diária inimaginável em tempos “normais”.

 

Mas que saudades dos palcos...

 

 

Cartas Portuguesas 5: o cantor no inverno
Luiz Carlos Sá

COMENTÁRIOS

O capacitor envelhece em um equipamento pouco usado também? Ou ele degrada principalmente com o uso? Por exemplo, um equipamento da década de 80 muito pouco usado precisaria de recap por desgaste do tempo?

- Henrique M

Ótimo, vai ajudar muito! Cesar é fantástico, ótima matéria!

- adriano vasque da

Saudades da Paranoia saudável que tínhamos no Freeeeeee Jazzzzzz Festival (imitando Zuza em suas apresentações magnificas) Parabéns Farat Forte abraço

- Ernani Napolitano

Artigo incrivel! Extremamente realista e necessário, obrigado mestre!

- Jennifer Rodrigues

Depois de 38 anos ouvindo o disco, eis q me deparo com a história dele. Multo bom!! Abrss

- Fernando Baptista Junqueira

Que maravilha de matéria, muito verdadeira é muito bem escrita, quem viveu como eu esta época, só pode agradecer pela oportunidade que Deus me concedeu. Vou ler todas, mas tinha que começar por esta… abraços…

- Caio Flávio

Só li verdades! Parabéns pela matéria Farat

- Guile

Ótimo texto Zé parabéns !!!!! Aguardando os próximos!!!

- Marco Aurélio

Adoro ver e rever as lives do Sá! Redescobri várias músicas da dupla valorizadas pela execução nas "Lives do Sá". Espero que esse trabalho volte de vez em quando. O Sá, juntamente com o Guilherme Arantes e o Tom Zé, está entre os melhores contadores de casos da MPB. Um livro com a história da dupla/trio escrito por ele seria muito interessante!

- Bruno Sander

Ontem foi um desses dias em que a intuição está atenta. Saí a caminhar pela Savassi sabendo que iria entrar naquela loja de discos onde sempre acho algo precioso em vinil. Já na loja, fui logo aos brasileiros e lá estavam o Nunca e o Pirão de Peixe em ótimo estado de conservação, o que é raríssimo. Comprei ambos. O 2º eu já tinha, meio chumbado. O Nunca eu conhecia de CD, e tem algumas das músicas que mais gosto da dupla, p. ex. Nuvens d'Água (acho perfeita), Coisa A-Toa (alusão à ditadura?), e outras. Me disseram que o F. Venturini é fã do Procol Harum, e realmente alguns solos de órgão dele fazem lembrar a banda inglesa.

- João Henrique Jr.

Que maravilha de matéria. Me transportei aos anos de ouro da música brasileira

- Sidney Ribeiro

Trabalho lindão. Parabéns à todos os envolvidos!

- Anderson Farias de Melo

O que dizer do melhor disco da música nacional(minha opinião). Tive o prazer em ver eles como dupla e a volta como trio em um shopping da zona leste de sampa. Lançamento do disco outra vez na estrada. Espero poder voltar a vê-los novamente, já que o Sa hoje mora fora do Brasil. E essa Pandemia, que isolou muito as pessoas. Obrigado por vocês existirem como músicos, poetas e instrumentistas. Vocês são F..., Obrigado, abracos

- Luiz antonio Rocha

Que maravilha Querido Paulinho Paulo Farat!! Obrigado por dividir conosco momentos tão lindos , pela maravilha de pessoa e imenso talento que Vc sempre teve, tem e terá, sempre estará no lugar certo e na hora certa ! Emocionante! Tive a honra de trabalhar muitas vezes com Vc, em especial na época do Zonazul , obrigado por tudo, parabéns pela brilhante carreira e que Deus Abençõe sempre . Bjbj

- Michel Freidenson

Mais uma vez um texto sensacional sobre a história da música e dos músicos brasileiros. Parabéns primo e obrigado por manter viva a memória dessas pessoas tão especiais para nós E vai gravar o vídeo desta semana! Kkkk

- Carlos Ronconi

Grande Farat!!! Bacana demais a coluna! Cheio de boas memorias pra compartilha!!!

- Luciana Lee

Valeu Paulo Farat por registrar nosso trabalho com tanto carinho e emoção sincera. Foram momentos profissionais muito importantes para todos nós. Inesquecíveis ! A todos os membros de nossa equipe,( e que equipe! ) Nosso Carinho e Saudades ! ???? ???????????????????? Guilherme Emmer Dias Gomes Mazinho Ventura Heitor TP Pereira Paulo Braga Renato Franco Walter Rocche Hamilton Griecco Micca Luiz Tornaghi Carlão Renato Costa Selma Silva Marilene Gondim Cláudia Zettel (in memoriam) Cristina Ferreira Neuza Souza

- Alberto Traiger

Depois de um ano de empresa 3M pude fazer o bendito carnê e comprei uma vitrolinha (em 12X) e na mesma hora levei Pirão, Quatro (Que era o novo), Es´pelho Cristalino e Vivo do Alceu, fiquei um ano ouvindo e pirando sem parar, depois vi o show do Quatro em Campinas. Considero o mais equilibrado de todos, sendo que sempre pendendo pro rural e nem tanto pro urbano, um disco atemporal podendo ser ouvido em qualquer situação, pois levanta o astral mesmo. No momento, Chuva no campo é ''a favorita'', mas depois passa e vem outra, igualzinho à aquela banda de Liverpool, manja????

- Ademilson Carlos de Sá

B R A V O!!! Paulo Farat não esqueça: “Afina isso aí moleque!” Hahahaha Tremendo profissional, sou teu fã, Grande abraço!

- Dudu Portes

Show é sensacional. Mas a s sensação intimista de parecer que a live é um show particular, dentro da sua casa, do seu quarto, é impagável. Parabéns família, incluindo Guarabyra e Tommy...

- Ricardo Amatucci

Paulo Farat vai esta nas lives do Papo Na Web a partir de amanha apresentando "Os Albuns Que Marcaram As Nossas Vidas"" Não percam, www.facebook.com/depaponaweb todas as terças-feiras as 20:00 horas

- Carlos Ronconi

Caro Luiz Carlos Sá, as canções que vocês fazem são maravilhosas, sinto a energia de cada uma. Tornei-me um admirador do trabalho de vocês no final dos anos 1970 com o LP Quatro e a partir de então saí procurando os discos de vocês, paguei um preço extorsivo pelo vendedor, os LP's "Casaco Marrom" do Guarabyra e "Passado, Presente e Futuro" (primeiro do Trio), mas valeu. tenho todos em LP's e CD's até o Antenas, depois desse só em CD's e o DVD "Outra Vez Na Estrada" exceto o mais recente "Cinamomo" mas em breve estarei com ele para curtir. A última vez que vi um show da dupla (nunca vi o trio em palco), foi no Recife no dia 16/04/2016 na Caixa Cultural, vi as duas apresentações. Levei dois bolos de rolo pra vocês, mas o Guarabyra não estava. Quero registrar que tenho até o LP "Vamos Por Aí", todos autografados, que foi num show feito no Teatro do Parque, as apresentações seriam nos 14,15 e 16/10/1992 mas o Guarabyra perdeu o voo e só foram dois dias, no dia do seu aniversário e outro no dia 16. Inesquecível. Agora estou lendo essas crônicas maravilhosas. Grande abraço forte e fraterno e muita saúde e sucesso pra vocês, sempre. P.S. O meu perfil no Facebook é Xavier de Brito e estou lá como Super Fã.

- Edison Xavier de Brito

Me lembro de ter lido algumas destas crônicas dos discos quando voce as publicou no Facebook em 2013, Sá. Muito emocionante reler e me emocionar de novo. Voces foram trilha sonora importantíssima dos últimos anos da minha vida. Sou de 1986, portanto de uma geração mais nova que escuta voces. Gratidão e vida longa a voces!

- Luiz Fernando Lopes

Salve!!! Que maravilha conhecer essas histórias de discos que fazem parte da minha vida. Parabéns `à Backstage e ao Sá! E, claro, esperando a crônica do Pirão. Esse disco me acompanha há mais de quarenta anos! Minhas filhas escutaram desde bebês e minha neta, que vai nascer agora em setembro, vai aprender a cantar todas as músicas!

- Maurício Cruz

com esse time de referências musicais (exatamente as minhas) mais o seu talento, não tem como não fazer música boa!!!! parabéns!!! com uma abraço de um fã que ouve seus discos desde essa época!

- nico figueiredo

Boa noite amigo, gostei muito das suas explicações, pois trabalho com mix gosto muito mesmo e assistindo você falando disso tudo gostei muito um abraço.

- Rubens Miranda Rodrigues

Obrigado Sá, obrigado Backstage, adoro essas histórias, muito bom, gostaria de ouvir histórias sobre as letras tbém, abç.

- Robson Marcelo ( Robinho de Guariba SP )

Esperando ansioso o Pirão de Peixe e o 4. Meu primeiro S&G

- Jeferson

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