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COLUNISTAS

Discos da minha vida: Amanhã

05/06/2020 - 17:45h
Atualizado em 05/06/2020 - 17:48h

 

Uma crônica recheada de saudade, mas sem nostalgia. Porque chegamos ao século XXI com a volta de Zé Rodrix ao trio, que caiu de novo na estrada. E aí, em 2009, começamos a gravar o... AMANHÃ.

 

 

O “Outra Vez na Estrada” teve uma boa carreira, tanto em CD quanto em DVD: Jesus Numa Moto tocou em várias rádios e começamos de novo a ter uma boa sequência de shows. Mas o tempo foi passando e nada de conseguirmos realizar o que mais queríamos: gravar um disco só de músicas inéditas. Com a crise fonográfica chegando ao auge por força da pirataria e dos downloads “gratuitos” na internet, as fábricas insistiam em dar tiros no próprio pé: em vez de abrir o leque de gêneros no cast artístico e assim vender um pouco de cada, investiam milhões só nos grandes vendedores, o que as expunha mais ainda aos piratas...


Depois de muito correr de lá pra cá, conseguimos um apoio da Caixa Econômica Federal e pudemos finalmente entrar em estúdio. Como de hábito, nos juntamos para ensaiar as novas músicas na casa do Zé, no Pacaembu. Como eu era o único que morava fora de São Paulo, paguei minhas penas morando por quase quatro meses em hotel. Não que eu não goste de hotéis, mas esses quatro meses seguidos fora de casa me deixaram estressado de verdade. Quando afinal pudemos entrar no estúdio propriamente dito, eu estava uma pilha de nervos: as discussões sobre o repertório, que já tinham sido mais intensas que o esperado na fase de ensaios, transformaram-se em bate-bocas nas gravações e lá pela segunda semana o clima entre eu e Zé acabou por ficar quase irrespirável. O problema era que na cabeça de cada um de nós dois havia um disco diferente: enquanto o Zé queria seguir a trilha estrita do rock rural, eu preferiria fazer um CD chegado a novas experiências como tentei em Novo Rio (que o Zé gostava) e Amar Direito (que ele detestava, ou pelo menos não queria no disco). Entráramos em acordo com Sonho Triste em Copacabana (minha e dele) que para mim é a melhor do CD, mas quando Paulinho Calasans assumiu o piano de Amar Direito, que era arranjo dele, Paulinho, o Zé saiu do estúdio, pisando duro... e aí o clima azedou de vez entre nós dois. Tavito, nosso produtor, angustiado com o péssimo rumo que as coisas estavam tomando, pedia calma. Mas a coisa só amainou quando Guarabyra ameaçou não vir mais ao estúdio. Acho que ali eu e Zé entendemos a bobagem que estávamos fazendo e resolvemos baixar a bola. No final, estava tudo dando certo. Paramos, olhamos para o que tínhamos feito e ficamos satisfeitos. O disco tinha a cara dos três e resumia com fidelidade o que se poderia chamar de “rock rural” de 2009. Na capa de Érico San Juan, uma premonitória foto do Jorge Studio: nós três olhando na direção de onde – teoricamente – viria o Amanhã que sonhávamos para o trio. Mal sabíamos que o trio estava por terminar, não por nossas rusgas, insignificantes diante do que se aproximava, mas porque - poucos dias depois de darmos por encerrada a mixagem - deu-se o impossível, o inacreditável, o indescritível, o inesperado... o Zé simplesmente morreu. 


Assim: depois de um fim de semana de shows, finalizando num domingo em São José do Rio Preto, eu e Zé já estávamos numa ótima. Voltei para casa, em BH, e passei a semana ao telefone, acertando a estratégia de lançamento do Amanhã. Na madrugada de sexta feira, 22 de maio de 2009, lá pelas duas da manhã, meu celular tocou. Eu estava assistindo um filme na TV e estranhei a chamada. Era o Tavito:


- Sá, meu amigo...
Mesmo com o silêncio que se seguiu eu jamais esperaria o que veio depois.
- Nosso Zé morreu.
Não consigo até hoje reconstituir satisfatoriamente o que se passou na minha cabeça naquela hora. Claro que a princípio não pude crer no que ouvia, mas como Tavito jamais inventaria uma coisa daquelas, achei que ele certamente havia sido vítima de alguma brincadeira de mau gosto. No momento seguinte uma dúvida passou pela minha cabeça: era o Tavito mesmo? Era. 
- Acho que foi um enfarto. Estou indo pra casa dele agora.


Não me lembro do que falei ou como desliguei. Não me lembro de como minha mulher acordou e chegou na sala de TV. Só me lembro de estar dentro de um abraço, aos prantos, enfrentando a dura realidade daquele acontecido. Não me lembro sequer de como entrei no primeiro voo da manhã seguinte para São Paulo, ou de como desci e peguei um táxi, ou de como cheguei na casa do Pacaembu onde tanto tínhamos cantado, sonhado, ensaiado e vivido. Tudo isso me parece até hoje uma nuvem negra, o velório na loja maçônica da Liberdade, os amigos me amparando... como o Zé, aquele imorrível, dinâmico, elétrico personagem presente em mais de quarenta anos da minha vida poderia desaparecer assim?

 


Ainda ali no bar da loja maçônica onde viramos algumas in memoriam do nosso ironicamente abstêmio parceiro de vida e música, eu e Guarabyra combinamos prosseguir a carreira em dupla e lançar o disco. Que melhor fazer em homenagem ao Zé senão mostrar sua proficiência como instrumentista, cantor, arranjador e compositor em plena forma? A morte é uma ladra cruel e sem-vergonha: não se peja de deixar uma Humanidade sofrendo em função dela, não é mesmo?


E assim, cumpridos os ritos legais e cerca de um ano depois de gravado, o Amanhã chegou às poucas lojas especializadas que ainda restavam em 2010 através do Roupa Nova Music, selo dos nossos amigos do Roupa Nova. Mas nós, ainda em choque, pouco poderíamos reproduzir do disco ao vivo, ou mesmo divulgá-lo: tudo nos parecia uma desonesta carona com o infortúnio, um macabro “aproveitamento” da ausência do nosso parceiro. Simplesmente largamos o disco pra lá. Ainda assim ele vendeu ralas cinco mil cópias, na esteira de um monte de críticas elogiosas. Não é um disco completamente inovador, mas é criativo; não tem ousadias encomendadas, mas tem sim ótimas músicas e vocais bem imaginados e realizados.


Como o tempo é o melhor médico, fomos aos poucos levantando a cabeça e hoje estamos até conseguindo cantar nos shows alguma coisa do que o Zé nos deixou. Mas ouçam o Amanhã, CD surgido de crises, tapas e beijos, intenso, dividido e uno ao mesmo tempo, coisa – desculpem a falta de modéstia... – rara e brilhante, contendo os últimos lampejos de um músico também raro e brilhante como Zé Rodrix e de uma união que venceu o tempo e as diferenças, um sonho de três garotos que só queriam tocar, viajar e cantar pelo Mundo afora, e que – vejam só! – conseguiram!

 

 

Discos da minha vida: Amanhã
Luiz Carlos Sá

COMENTÁRIOS

O capacitor envelhece em um equipamento pouco usado também? Ou ele degrada principalmente com o uso? Por exemplo, um equipamento da década de 80 muito pouco usado precisaria de recap por desgaste do tempo?

- Henrique M

Ótimo, vai ajudar muito! Cesar é fantástico, ótima matéria!

- adriano vasque da

Saudades da Paranoia saudável que tínhamos no Freeeeeee Jazzzzzz Festival (imitando Zuza em suas apresentações magnificas) Parabéns Farat Forte abraço

- Ernani Napolitano

Artigo incrivel! Extremamente realista e necessário, obrigado mestre!

- Jennifer Rodrigues

Depois de 38 anos ouvindo o disco, eis q me deparo com a história dele. Multo bom!! Abrss

- Fernando Baptista Junqueira

Que maravilha de matéria, muito verdadeira é muito bem escrita, quem viveu como eu esta época, só pode agradecer pela oportunidade que Deus me concedeu. Vou ler todas, mas tinha que começar por esta… abraços…

- Caio Flávio

Só li verdades! Parabéns pela matéria Farat

- Guile

Ótimo texto Zé parabéns !!!!! Aguardando os próximos!!!

- Marco Aurélio

Adoro ver e rever as lives do Sá! Redescobri várias músicas da dupla valorizadas pela execução nas "Lives do Sá". Espero que esse trabalho volte de vez em quando. O Sá, juntamente com o Guilherme Arantes e o Tom Zé, está entre os melhores contadores de casos da MPB. Um livro com a história da dupla/trio escrito por ele seria muito interessante!

- Bruno Sander

Ontem foi um desses dias em que a intuição está atenta. Saí a caminhar pela Savassi sabendo que iria entrar naquela loja de discos onde sempre acho algo precioso em vinil. Já na loja, fui logo aos brasileiros e lá estavam o Nunca e o Pirão de Peixe em ótimo estado de conservação, o que é raríssimo. Comprei ambos. O 2º eu já tinha, meio chumbado. O Nunca eu conhecia de CD, e tem algumas das músicas que mais gosto da dupla, p. ex. Nuvens d'Água (acho perfeita), Coisa A-Toa (alusão à ditadura?), e outras. Me disseram que o F. Venturini é fã do Procol Harum, e realmente alguns solos de órgão dele fazem lembrar a banda inglesa.

- João Henrique Jr.

Que maravilha de matéria. Me transportei aos anos de ouro da música brasileira

- Sidney Ribeiro

Trabalho lindão. Parabéns à todos os envolvidos!

- Anderson Farias de Melo

O que dizer do melhor disco da música nacional(minha opinião). Tive o prazer em ver eles como dupla e a volta como trio em um shopping da zona leste de sampa. Lançamento do disco outra vez na estrada. Espero poder voltar a vê-los novamente, já que o Sa hoje mora fora do Brasil. E essa Pandemia, que isolou muito as pessoas. Obrigado por vocês existirem como músicos, poetas e instrumentistas. Vocês são F..., Obrigado, abracos

- Luiz antonio Rocha

Que maravilha Querido Paulinho Paulo Farat!! Obrigado por dividir conosco momentos tão lindos , pela maravilha de pessoa e imenso talento que Vc sempre teve, tem e terá, sempre estará no lugar certo e na hora certa ! Emocionante! Tive a honra de trabalhar muitas vezes com Vc, em especial na época do Zonazul , obrigado por tudo, parabéns pela brilhante carreira e que Deus Abençõe sempre . Bjbj

- Michel Freidenson

Mais uma vez um texto sensacional sobre a história da música e dos músicos brasileiros. Parabéns primo e obrigado por manter viva a memória dessas pessoas tão especiais para nós E vai gravar o vídeo desta semana! Kkkk

- Carlos Ronconi

Grande Farat!!! Bacana demais a coluna! Cheio de boas memorias pra compartilha!!!

- Luciana Lee

Valeu Paulo Farat por registrar nosso trabalho com tanto carinho e emoção sincera. Foram momentos profissionais muito importantes para todos nós. Inesquecíveis ! A todos os membros de nossa equipe,( e que equipe! ) Nosso Carinho e Saudades ! ???? ???????????????????? Guilherme Emmer Dias Gomes Mazinho Ventura Heitor TP Pereira Paulo Braga Renato Franco Walter Rocche Hamilton Griecco Micca Luiz Tornaghi Carlão Renato Costa Selma Silva Marilene Gondim Cláudia Zettel (in memoriam) Cristina Ferreira Neuza Souza

- Alberto Traiger

Depois de um ano de empresa 3M pude fazer o bendito carnê e comprei uma vitrolinha (em 12X) e na mesma hora levei Pirão, Quatro (Que era o novo), Es´pelho Cristalino e Vivo do Alceu, fiquei um ano ouvindo e pirando sem parar, depois vi o show do Quatro em Campinas. Considero o mais equilibrado de todos, sendo que sempre pendendo pro rural e nem tanto pro urbano, um disco atemporal podendo ser ouvido em qualquer situação, pois levanta o astral mesmo. No momento, Chuva no campo é ''a favorita'', mas depois passa e vem outra, igualzinho à aquela banda de Liverpool, manja????

- Ademilson Carlos de Sá

B R A V O!!! Paulo Farat não esqueça: “Afina isso aí moleque!” Hahahaha Tremendo profissional, sou teu fã, Grande abraço!

- Dudu Portes

Show é sensacional. Mas a s sensação intimista de parecer que a live é um show particular, dentro da sua casa, do seu quarto, é impagável. Parabéns família, incluindo Guarabyra e Tommy...

- Ricardo Amatucci

Paulo Farat vai esta nas lives do Papo Na Web a partir de amanha apresentando "Os Albuns Que Marcaram As Nossas Vidas"" Não percam, www.facebook.com/depaponaweb todas as terças-feiras as 20:00 horas

- Carlos Ronconi

Caro Luiz Carlos Sá, as canções que vocês fazem são maravilhosas, sinto a energia de cada uma. Tornei-me um admirador do trabalho de vocês no final dos anos 1970 com o LP Quatro e a partir de então saí procurando os discos de vocês, paguei um preço extorsivo pelo vendedor, os LP's "Casaco Marrom" do Guarabyra e "Passado, Presente e Futuro" (primeiro do Trio), mas valeu. tenho todos em LP's e CD's até o Antenas, depois desse só em CD's e o DVD "Outra Vez Na Estrada" exceto o mais recente "Cinamomo" mas em breve estarei com ele para curtir. A última vez que vi um show da dupla (nunca vi o trio em palco), foi no Recife no dia 16/04/2016 na Caixa Cultural, vi as duas apresentações. Levei dois bolos de rolo pra vocês, mas o Guarabyra não estava. Quero registrar que tenho até o LP "Vamos Por Aí", todos autografados, que foi num show feito no Teatro do Parque, as apresentações seriam nos 14,15 e 16/10/1992 mas o Guarabyra perdeu o voo e só foram dois dias, no dia do seu aniversário e outro no dia 16. Inesquecível. Agora estou lendo essas crônicas maravilhosas. Grande abraço forte e fraterno e muita saúde e sucesso pra vocês, sempre. P.S. O meu perfil no Facebook é Xavier de Brito e estou lá como Super Fã.

- Edison Xavier de Brito

Me lembro de ter lido algumas destas crônicas dos discos quando voce as publicou no Facebook em 2013, Sá. Muito emocionante reler e me emocionar de novo. Voces foram trilha sonora importantíssima dos últimos anos da minha vida. Sou de 1986, portanto de uma geração mais nova que escuta voces. Gratidão e vida longa a voces!

- Luiz Fernando Lopes

Salve!!! Que maravilha conhecer essas histórias de discos que fazem parte da minha vida. Parabéns `à Backstage e ao Sá! E, claro, esperando a crônica do Pirão. Esse disco me acompanha há mais de quarenta anos! Minhas filhas escutaram desde bebês e minha neta, que vai nascer agora em setembro, vai aprender a cantar todas as músicas!

- Maurício Cruz

com esse time de referências musicais (exatamente as minhas) mais o seu talento, não tem como não fazer música boa!!!! parabéns!!! com uma abraço de um fã que ouve seus discos desde essa época!

- nico figueiredo

Boa noite amigo, gostei muito das suas explicações, pois trabalho com mix gosto muito mesmo e assistindo você falando disso tudo gostei muito um abraço.

- Rubens Miranda Rodrigues

Obrigado Sá, obrigado Backstage, adoro essas histórias, muito bom, gostaria de ouvir histórias sobre as letras tbém, abç.

- Robson Marcelo ( Robinho de Guariba SP )

Esperando ansioso o Pirão de Peixe e o 4. Meu primeiro S&G

- Jeferson

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