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COLUNISTAS

Discos da minha vida: Dez anos juntos

07/05/2020 - 18:22h
Atualizado em 14/05/2020 - 16:50h

Como os leitores habituais da coluna já sabem, venho contando em sequência a história dos discos da minha carreira. Depois de Passado, Presente, Futuro e do Terra - ambos do trio Sá, Rodrix & Guarabyra - e dos quatro primeiros da dupla, chego ao quinto de Sá & Guarabyra, o...Dez anos juntos

A Som Livre não gostou nem um pouquinho da demora nas mixagens do disco de 1979, o Quatro. Os custos subiram, o disco acabou ficando caro demais e o departamento financeiro da gravadora falou mais alto que o artístico. Em consequência, recebemos um delicado “bilhete azul” e fomos viver do nosso estúdio - o Vice Versa, em São Paulo - e de alguns shows. Digo “alguns” porque naquela época a banda que não tivesse ônibus e equipamento próprios sofria sérias restrições de mobilidade e venda, uma vez que os custos de passagens aéreas e aluguel de PA e luz eram determinantes para que os artistas tivessem condições de atender com regularidade os pedidos de shows de um país continental como o nosso. Como persistíamos em levar a equipe completa, sofríamos a forte concorrência daqueles que tinham pronto seu esquema próprio de viagem ou de outros que se conformavam em reduzir seu espetáculo ao mínimo possível. Assim, carregando o estigma de artistas “caros” e pouco propensos a dançar conforme alguma música que eventualmente nos fosse imposta, penamos quase três longos anos sem uma gravadora disposta a jogar suas fichas em nós. De repente, o Grande Acaso – deidade inventada e professada contritamente por meu parceiro Guarabyra e que tem em mim um de seus devotos mais praticantes– fez com que uma concentração de conjuminâncias positivas nos dessem um empurrão espetacular na carreira. Primeiramente, surgiu diante de nós a figura de Mauro Magdaleno, um cara cheio de ideias, ideias que ele proativamente fazia acontecer em cascata com espantosa facilidade. Como diz a velha piada, Mauro era capaz de vender geladeira pra pinguim, só que a geladeira dele sempre chegava cheia de boas surpresas lá dentro, não importando quão exigente fosse o pinguim... Mauro era extremamente inteligente, articulado e articulador. Se não tivesse partido tão cedo, certamente estaria hoje no topo da lista dos dez mais criativos do management musical, inimigo de morte que era da mediocridade e do óbvio. Colado a ele veio Herbert Lucas, rápido aprendiz do dinamismo de Mauro, que no futuro viria a ser nosso empresário por muitos anos e aventuras. Mauro e Herbert formavam uma daquelas duplas que têm o que eu chamo de “acoplamento automático”, semelhante ao de estações espaciais, satélites e semelhantes: a coisa faz um “clic” e funciona. Mauro saiu-se logo com a bolação de um novo show: 10 Anos de Sá & Guarabyra. Fiz ver a ele que na realidade esses dez anos incluíam dois de trio com Zé Rodrix e sugeri então a mudança do nome para Dez Anos Juntos, o que era expressão da verdade, e tocamos em frente. Mas quando ele apareceu com a sugestão de estrear no Teatro Paulo Eiró, um ponto sem tradição e meio que esquecido no distante bairro de Santo Amaro, quase desanimei. Morando no Rio, longe da realidade paulistana, eu tinha Santo Amaro como um lugar remoto e inacessível para o nosso público. Com sua fantástica capacidade de argumentação e conhecimento de causa, Mauro não demorou muito a me convencer do contrário. E ele estava certo: logo na primeira das duas semanas (ou foram quatro?) de temporada, para minha total surpresa, lotamos o Paulo Eiró até o teto e deixamos uma multidão de fora.

 


O boca a boca funcionou rapidamente e fez aparecer diante de nós mais uma dupla de “acoplamento automático”. Foi assim: recebi um telefonema urgente de Guarabyra convocando-me para uma reunião em sua casa (quase um sítio!) no então tranquilo Parque Fernanda, onde conheci Lyzandro Antonio e Johnny Magalhães, mais conhecido este como Johnny B. Goode (é com “e” no fim mesmo, como Chuck Berry escreveu!). Lembro-me até hoje da minha chegada na mansão guarabírica, eu subindo a rampa que passava por baixo do arco de cimento – o cachorródromo - que Guarabyra construíra para que seus muitos cães conseguissem vigiar a casa por todos os lados, vendo mais acima as figuras sorridentes de Johnny e Lyzandro, que - embora eu então ainda não pudesse supor – acabariam por ser no futuro próximo e distante dois dos meus mais queridos amigos entre os muitos que fiz na desvairada paulicéia. Lyzandro, alto, com um pouco de sobrepeso, olhos rasgados, barba, bigode e ralos cabelos louros, gargalhada fácil e boa de se ouvir, contrastava com a cara de índio boliviano de Johnny, estatura média, longos cabelos negros e cacheados, olhos penetrantemente azuis, aparentemente (só aparentemente, como descobrimos depois...) mais sério e desconfiado que o parceiro. Eles traziam uma proposta da RCA: gravar ao vivo o show do Paulo Eiró.


Como isso aconteceu, acho, tipo segunda-feira, tínhamos pouco mais de 48 horas pra armar o circo, já que o show acontecia de quinta a domingo. Corremos atrás do nosso diretor de áudio favorito, Ricardo “Franjinha” Carvalheira, e na quinta as máquinas de gravação da RCA já estavam na coxia. Entendam que em 1982 isso era uma proeza, visto que não havia no Brasil um protocolo decente para gravações ao vivo em tão curto prazo. Era um improviso peitado pela coragem de artistas, técnicos e produtores. Piorando a parada, na quarta-feira minha voz desapareceu da garganta, como se uma praga me tivesse sido rogada por um fantasma da ópera que habitasse os cafundós do Paulo Eiró. Atendido por mais uma dupla “clic”, o otorrino Luc Weckx (primeiro amigo belga da minha vida!) e aquela mistura fantástica de amiga, psicóloga e fonoaudióloga que é Mara Behlau, fui posto de volta ao jogo em menos de 24 horas conseguindo sair do zero de voz e gravar o disco com cerca de 75% de meu potencial vocal, Luc e Mara me dando força ali mesmo na coxia do teatro.


Como a RCA queria fazer o lançamento a tempo das compras de Natal, 10 Anos Juntos é um disco de completa correria e improviso. Foi mixado direto na coxia e mandado assim mesmo para a fábrica. Teve um custo irrisório, mesmo contando com uma equipe de primeira linha, como nossos parceiros de fotos e layout do disco anterior, Ella Durst e Gernot Stiegler, que saíram correndo atrás do prejuízo dos prazos exíguos e conseguiram, pelo menos, fazer um encarte à altura da sua capacidade profissional. A capa, que a RCA exigiu ser feita ao vivo também, ficou meio no susto, desfocada, vistas as más condições de iluminação do Paulo Eiró, mas expressando ao mesmo tempo a intensidade da comemoração. Na base de apoio, a banda Ponte Aérea: Constant Papineanu (teclados), Pedro Jaguaribe, o Jaguar (baixo), Nonato “Nonô”(bateria), Betto Martins e Johnny Flavin (guitarras).


Para nosso maior espanto, contado o improviso e o pouquíssimo tempo de produção possíveis, o disco saiu queimando nas paradas: em menos de uma semana de lançado já era um dos mais executados nas rádios do sudeste, pilotado por Vem Queimando a Nave Louca e Sete Marias. De repente, instada por sabe Deus que advogado de porta de estúdio, parte da banda resolveu processar a RCA por nebulosos “direitos de imagem” sobre as fotos de capa, na qual aliás só Jaguar e Betto figuravam. O disco foi recolhido das lojas em pleno boom de vendas e o resultado foi catastrófico para todos, pois as portas da RCA fecharam-se para os músicos e perdemos muito nas vendas de lançamento. Mas a coisa não degringolou de todo: resolvidas as pendengas judiciais e arquivado o processo por improcedência, o 10 Anos voltou às lojas a todo vapor, escorado em surpreendentes números de execução radiofônica, dados o improviso e a falta de recursos técnicos com que foi gravado, com o Franja fazendo milagres nas velhas Ampex da RCA deslocadas para o teatro. A maioria das músicas que figuraram no repertório já era conhecida do público, a única inédita era O Bando na Dança. Mas nele registramos pela primeira vez nossas versões para Caçador de Mim (Sá - Sérgio Magrão), gravada anteriormente pelo 14 Bis e por Milton Nascimento, e a minha Jeito de Viver, que entrara antes em discos do grupo vocal Som Livre e de Tavito. 


Chega a ser irônico o fato de que nosso disco mais barato, mais corrido e com menos recursos seja até hoje o mais vendido de nossa carreira, tendo durado mais de vinte anos em catálogo e ultrapassado o milhão de cópias. Periga ter sido – algum dia vou tirar isso a limpo... – um dos produtos de melhor custo-benefício da fonografia brasileira.

 

 


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Discos da minha vida: Dez anos juntos
Luiz Carlos Sá

COMENTÁRIOS

O capacitor envelhece em um equipamento pouco usado também? Ou ele degrada principalmente com o uso? Por exemplo, um equipamento da década de 80 muito pouco usado precisaria de recap por desgaste do tempo?

- Henrique M

Ótimo, vai ajudar muito! Cesar é fantástico, ótima matéria!

- adriano vasque da

Saudades da Paranoia saudável que tínhamos no Freeeeeee Jazzzzzz Festival (imitando Zuza em suas apresentações magnificas) Parabéns Farat Forte abraço

- Ernani Napolitano

Artigo incrivel! Extremamente realista e necessário, obrigado mestre!

- Jennifer Rodrigues

Depois de 38 anos ouvindo o disco, eis q me deparo com a história dele. Multo bom!! Abrss

- Fernando Baptista Junqueira

Que maravilha de matéria, muito verdadeira é muito bem escrita, quem viveu como eu esta época, só pode agradecer pela oportunidade que Deus me concedeu. Vou ler todas, mas tinha que começar por esta… abraços…

- Caio Flávio

Só li verdades! Parabéns pela matéria Farat

- Guile

Ótimo texto Zé parabéns !!!!! Aguardando os próximos!!!

- Marco Aurélio

Adoro ver e rever as lives do Sá! Redescobri várias músicas da dupla valorizadas pela execução nas "Lives do Sá". Espero que esse trabalho volte de vez em quando. O Sá, juntamente com o Guilherme Arantes e o Tom Zé, está entre os melhores contadores de casos da MPB. Um livro com a história da dupla/trio escrito por ele seria muito interessante!

- Bruno Sander

Ontem foi um desses dias em que a intuição está atenta. Saí a caminhar pela Savassi sabendo que iria entrar naquela loja de discos onde sempre acho algo precioso em vinil. Já na loja, fui logo aos brasileiros e lá estavam o Nunca e o Pirão de Peixe em ótimo estado de conservação, o que é raríssimo. Comprei ambos. O 2º eu já tinha, meio chumbado. O Nunca eu conhecia de CD, e tem algumas das músicas que mais gosto da dupla, p. ex. Nuvens d'Água (acho perfeita), Coisa A-Toa (alusão à ditadura?), e outras. Me disseram que o F. Venturini é fã do Procol Harum, e realmente alguns solos de órgão dele fazem lembrar a banda inglesa.

- João Henrique Jr.

Que maravilha de matéria. Me transportei aos anos de ouro da música brasileira

- Sidney Ribeiro

Trabalho lindão. Parabéns à todos os envolvidos!

- Anderson Farias de Melo

O que dizer do melhor disco da música nacional(minha opinião). Tive o prazer em ver eles como dupla e a volta como trio em um shopping da zona leste de sampa. Lançamento do disco outra vez na estrada. Espero poder voltar a vê-los novamente, já que o Sa hoje mora fora do Brasil. E essa Pandemia, que isolou muito as pessoas. Obrigado por vocês existirem como músicos, poetas e instrumentistas. Vocês são F..., Obrigado, abracos

- Luiz antonio Rocha

Que maravilha Querido Paulinho Paulo Farat!! Obrigado por dividir conosco momentos tão lindos , pela maravilha de pessoa e imenso talento que Vc sempre teve, tem e terá, sempre estará no lugar certo e na hora certa ! Emocionante! Tive a honra de trabalhar muitas vezes com Vc, em especial na época do Zonazul , obrigado por tudo, parabéns pela brilhante carreira e que Deus Abençõe sempre . Bjbj

- Michel Freidenson

Mais uma vez um texto sensacional sobre a história da música e dos músicos brasileiros. Parabéns primo e obrigado por manter viva a memória dessas pessoas tão especiais para nós E vai gravar o vídeo desta semana! Kkkk

- Carlos Ronconi

Grande Farat!!! Bacana demais a coluna! Cheio de boas memorias pra compartilha!!!

- Luciana Lee

Valeu Paulo Farat por registrar nosso trabalho com tanto carinho e emoção sincera. Foram momentos profissionais muito importantes para todos nós. Inesquecíveis ! A todos os membros de nossa equipe,( e que equipe! ) Nosso Carinho e Saudades ! ???? ???????????????????? Guilherme Emmer Dias Gomes Mazinho Ventura Heitor TP Pereira Paulo Braga Renato Franco Walter Rocche Hamilton Griecco Micca Luiz Tornaghi Carlão Renato Costa Selma Silva Marilene Gondim Cláudia Zettel (in memoriam) Cristina Ferreira Neuza Souza

- Alberto Traiger

Depois de um ano de empresa 3M pude fazer o bendito carnê e comprei uma vitrolinha (em 12X) e na mesma hora levei Pirão, Quatro (Que era o novo), Es´pelho Cristalino e Vivo do Alceu, fiquei um ano ouvindo e pirando sem parar, depois vi o show do Quatro em Campinas. Considero o mais equilibrado de todos, sendo que sempre pendendo pro rural e nem tanto pro urbano, um disco atemporal podendo ser ouvido em qualquer situação, pois levanta o astral mesmo. No momento, Chuva no campo é ''a favorita'', mas depois passa e vem outra, igualzinho à aquela banda de Liverpool, manja????

- Ademilson Carlos de Sá

B R A V O!!! Paulo Farat não esqueça: “Afina isso aí moleque!” Hahahaha Tremendo profissional, sou teu fã, Grande abraço!

- Dudu Portes

Show é sensacional. Mas a s sensação intimista de parecer que a live é um show particular, dentro da sua casa, do seu quarto, é impagável. Parabéns família, incluindo Guarabyra e Tommy...

- Ricardo Amatucci

Paulo Farat vai esta nas lives do Papo Na Web a partir de amanha apresentando "Os Albuns Que Marcaram As Nossas Vidas"" Não percam, www.facebook.com/depaponaweb todas as terças-feiras as 20:00 horas

- Carlos Ronconi

Caro Luiz Carlos Sá, as canções que vocês fazem são maravilhosas, sinto a energia de cada uma. Tornei-me um admirador do trabalho de vocês no final dos anos 1970 com o LP Quatro e a partir de então saí procurando os discos de vocês, paguei um preço extorsivo pelo vendedor, os LP's "Casaco Marrom" do Guarabyra e "Passado, Presente e Futuro" (primeiro do Trio), mas valeu. tenho todos em LP's e CD's até o Antenas, depois desse só em CD's e o DVD "Outra Vez Na Estrada" exceto o mais recente "Cinamomo" mas em breve estarei com ele para curtir. A última vez que vi um show da dupla (nunca vi o trio em palco), foi no Recife no dia 16/04/2016 na Caixa Cultural, vi as duas apresentações. Levei dois bolos de rolo pra vocês, mas o Guarabyra não estava. Quero registrar que tenho até o LP "Vamos Por Aí", todos autografados, que foi num show feito no Teatro do Parque, as apresentações seriam nos 14,15 e 16/10/1992 mas o Guarabyra perdeu o voo e só foram dois dias, no dia do seu aniversário e outro no dia 16. Inesquecível. Agora estou lendo essas crônicas maravilhosas. Grande abraço forte e fraterno e muita saúde e sucesso pra vocês, sempre. P.S. O meu perfil no Facebook é Xavier de Brito e estou lá como Super Fã.

- Edison Xavier de Brito

Me lembro de ter lido algumas destas crônicas dos discos quando voce as publicou no Facebook em 2013, Sá. Muito emocionante reler e me emocionar de novo. Voces foram trilha sonora importantíssima dos últimos anos da minha vida. Sou de 1986, portanto de uma geração mais nova que escuta voces. Gratidão e vida longa a voces!

- Luiz Fernando Lopes

Salve!!! Que maravilha conhecer essas histórias de discos que fazem parte da minha vida. Parabéns `à Backstage e ao Sá! E, claro, esperando a crônica do Pirão. Esse disco me acompanha há mais de quarenta anos! Minhas filhas escutaram desde bebês e minha neta, que vai nascer agora em setembro, vai aprender a cantar todas as músicas!

- Maurício Cruz

com esse time de referências musicais (exatamente as minhas) mais o seu talento, não tem como não fazer música boa!!!! parabéns!!! com uma abraço de um fã que ouve seus discos desde essa época!

- nico figueiredo

Boa noite amigo, gostei muito das suas explicações, pois trabalho com mix gosto muito mesmo e assistindo você falando disso tudo gostei muito um abraço.

- Rubens Miranda Rodrigues

Obrigado Sá, obrigado Backstage, adoro essas histórias, muito bom, gostaria de ouvir histórias sobre as letras tbém, abç.

- Robson Marcelo ( Robinho de Guariba SP )

Esperando ansioso o Pirão de Peixe e o 4. Meu primeiro S&G

- Jeferson

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