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COLUNISTAS

Os discos da minha vida: Pirão de Peixe com Pimenta

30/04/2020 - 19:56h
Atualizado em 14/05/2020 - 16:59h

 

Como vocês já devem ter reparado, venho contando a história de nossos discos. Depois de Passado, Presente, Futuro e do Terra – ambos do trio Sá, Rodrix & Guarabyra – e dos dois primeiros da dupla, chego ao terceiro de Sá & Guarabyra, o...

 

PIRÃO DE PEIXE COM PIMENTA
Nossa jornada ao sertão sãofranciscano que deu origem ao Cadernos de Viagem estimulou-nos a voltar em busca de novas inspirações e transpirações musicais. Refizemos o roteiro anterior, saindo do Rio para Belo Horizonte e de lá pra Pirapora, Montes Claros, Janaúba, Mato Verde, Monte Azul, Porteirinha e Espinosa, onde deixamos Minas para trás e – vá seguindo aí no mapa! – entramos no sudoeste baiano via Carinhanha, Guanambi, Caetité e Riacho de Santana, para chegar, afinal, depois de mil e quatrocentos quilômetros de variadas aventuras, ao descanso na casa da família Guarabyra em Bom Jesus da Lapa, na beira do então ainda caudaloso São Francisco. Não lembro na verdade se essa foi minha segunda ou terceira viagem, mas o que importa é que foi nessa que provei o pirão de peixe do Egnaldo, em Pirapora, coroado por uma malagueta da braba, pra fazer suar debaixo daqueles quarenta graus proporcionados pelo caliente verão norte-mineiro.


Com o fracasso comercial do Cadernos de Viagem e nossa consequente saída da gravadora Continental, numa época em que as vendagens dos discos, o apoio das gravadoras e a execução das músicas nas rádios eram dados essenciais para a sobrevivência artística, estávamos realmente a perigo. Em 1976 shows eram apenas veículos de divulgação daquilo que realmente importava em termos artísticos e financeiros – o disco. A bolacha. O vinil. Qual não foi então meu alívio ao receber um telefonema do Guarabyra, poucos dias depois de voltarmos de nossa peregrinação à Lapa, mala cheia de músicas novas:


- Olha só – disse-me ele – encontrei com o João Araújo num voo pra São Paulo e ele nos chamou pra Som Livre.
Era a sopa no mel. João era o mandachuva da Som Livre, na época gravadora dos sonhos de todos nós, artistas levemente alternativos, acenando com a possibilidade concreta de fazer um disco classe A, via o state of the art estúdio Sigla (ex-Level) no Rio e a máquina de divulgação proporcionada pelo Sistema Globo, com suas rádios, TVs e tudo o mais. Em menos de uma semana estávamos assinando o contrato e reencontrando velhos amigos, além do próprio João, que fora o diretor artístico das minhas primeiras composições gravadas, quando lançara a cantora Luhli. Guto Graça Mello, ex-integrante do Grupo Manifesto, que cantara com Guarabyra a vitoriosa Margarida do Festival Internacional da Canção de 1967 era o nosso diretor de produção; na direção de estúdio e produção executiva estava Sérgio Mello, cujo pai, João Mello, fora produtor do disco de Luhli na Philips.


Foi justamente nessa segunda (ou terceira) viagem juntos que reencontramos a identidade da dupla, não resgatada por completo desde a saída do Zé (Rodrix). Viajar juntos sem destino exato ou hora para nada, era – e acredito que seja até hoje – a melhor maneira de nos manter unidos. É um prazer comum a nós dois e uma excelente ocasião de trocar idéias e fazer música.


Nesse entretempo, em tardes de ócio e cerveja gelada num barzinho lá de Bom Jesus da Lapa, ouvimos uma conversa estranha em outra mesa sobre acontecimentos mais estranhos ainda, referentes à construção de uma represa rio abaixo. Fomos perguntar pro seu Guarabyra, pai, o que era aquilo. E acabamos descobrindo que uma gigantesca inundação afundaria quatro importantes cidades do médio São Francisco: Remanso, Casanova, Sento-Sé e Pilão Arcado seriam submersas pela barragem a ser construída no salto de Sobradinho, formando um lago de mais de 4000 km² e deslocando de suas origens históricas mais de 60.000 pessoas. À medida que nos aprofundávamos no assunto, mais perplexos ficávamos: as indenizações pagas ao povo da região eram irrisórias diante do que elas iam perder, com o agravante de que elas eram arbitrariamente alojadas em “agrovilas” nas periferias das cidades rio acima, como a própria Bom Jesus da Lapa; o êxodo rural decorrente desse gigantesco movimento de gente já chegava em ondas às grandes capitais do sudeste, sem que quase ninguém soubesse que a origem daquele verdadeiro degredo de um povo estava lá na beira do grande rio. Só uma ditadura conseguiria forçar uma barra dessas, sem considerações ambientais ou “frescuras” do gênero, deixando para gerações futuras o mesmo sinistro “progresso” plantado na Amazônia, destruindo quase que por completo o modo de vida e o patrimônio cultural das populações ribeirinhas. A partir daí – e para iludir a inflexível censura da época – partimos para a composição de Sobradinho, tentando ver os acontecimentos do ponto de vista do ribeirinho. Embora carregando nas costas o ônus de uma letra melancólica que expunha a derrota de todo um povo – ou talvez até por isso – Sobradinho virou um clássico, com sua levada de xote-rock, marcando nossa despedida fonográfica dos amigos que partiram para a terceira formação d’O Terço (Sérgio Magrão no baixo, Luís Moreno na bateria e Sergio Kaffa no piano) e contando com o luxuosíssimo auxílio de Maurício Einhorn na gaita, Chico Batera na percussão e Chiquinho do Acordeon no próprio.


Mas o Pirão de Peixe não se deteve naquela viagem fluvial: já que por nossa própria natureza nos dividíamos numa esquizofrenia sertão/cidade, era natural que incorporássemos certo romantismo urbano dentro de um disco tão radicalmente Esse-Efe: assim chegaram Espanhola, a primeira e espetacularmente bem sucedida parceria de Guarabyra e Flavio Venturini, Canção dos Piratas – um peterpânico acalanto para nossos pequenos Gabriel e Miguel, maravilhosamente arranjada por Edu Souto Neto – e Coração de Maçã, herança do começo do trio, só agora gravada. Juntou-se a isso tudo a apaixonante Marimbondo de Marlui Miranda e Xico Chaves, nossa primeira incursão no terreno de intérpretes de música alheia. A capa de Lula Lindenberg retrata um almoço não no sertão, mas na sala da minha casa, esquina de Farme de Amoedo com Alberto de Campos, Ipanema, Rio de Janeiro, Brasil. A cachaça Januária que tenta sobressair-se na mesa é completamente fake, rsrsrs... é cerveja!


De resto, gravamos na ponte aérea, entre os estúdios da Sigla, RJ, e da Vice Versa, nosso estúdio próprio, em São Paulo. Repetiríamos esse esquema no disco seguinte, o Quatro. Mas isso é assunto pra próxima crônica.


Enquanto escrevo, recebo pelo Facebook, numa triste coincidência, a notícia do falecimento de João Araújo, amigo leal e peça importantíssima no desenrolar da nossa carreira. Detesto necrológios, mas adoro lembrar da delícia que foi meu derradeiro encontro com o João, décadas atrás, no aniversário do Cazuza.  João abriu a porta pra mim e ficou surpreso de constatar que apesar de ser parte de outra geração musical, eu era amigo do seu filho, de Frejat e primo de Dé Palmeira, baixista da primeira formação do Barão Vermelho. Brincou:
- Não sobe não! Fica aqui embaixo com tua turma! 


Eu subi. Mas se soubesse que esse seria nosso último encontro, teria ficado ali embaixo mesmo. Salve, João.

 


Clique aqui e leia mais histórias de Luiz Carlos Sá.


 

Os discos da minha vida: Pirão de Peixe com Pimenta
Luiz Carlos Sá

COMENTÁRIOS

O capacitor envelhece em um equipamento pouco usado também? Ou ele degrada principalmente com o uso? Por exemplo, um equipamento da década de 80 muito pouco usado precisaria de recap por desgaste do tempo?

- Henrique M

Ótimo, vai ajudar muito! Cesar é fantástico, ótima matéria!

- adriano vasque da

Saudades da Paranoia saudável que tínhamos no Freeeeeee Jazzzzzz Festival (imitando Zuza em suas apresentações magnificas) Parabéns Farat Forte abraço

- Ernani Napolitano

Artigo incrivel! Extremamente realista e necessário, obrigado mestre!

- Jennifer Rodrigues

Depois de 38 anos ouvindo o disco, eis q me deparo com a história dele. Multo bom!! Abrss

- Fernando Baptista Junqueira

Que maravilha de matéria, muito verdadeira é muito bem escrita, quem viveu como eu esta época, só pode agradecer pela oportunidade que Deus me concedeu. Vou ler todas, mas tinha que começar por esta… abraços…

- Caio Flávio

Só li verdades! Parabéns pela matéria Farat

- Guile

Ótimo texto Zé parabéns !!!!! Aguardando os próximos!!!

- Marco Aurélio

Adoro ver e rever as lives do Sá! Redescobri várias músicas da dupla valorizadas pela execução nas "Lives do Sá". Espero que esse trabalho volte de vez em quando. O Sá, juntamente com o Guilherme Arantes e o Tom Zé, está entre os melhores contadores de casos da MPB. Um livro com a história da dupla/trio escrito por ele seria muito interessante!

- Bruno Sander

Ontem foi um desses dias em que a intuição está atenta. Saí a caminhar pela Savassi sabendo que iria entrar naquela loja de discos onde sempre acho algo precioso em vinil. Já na loja, fui logo aos brasileiros e lá estavam o Nunca e o Pirão de Peixe em ótimo estado de conservação, o que é raríssimo. Comprei ambos. O 2º eu já tinha, meio chumbado. O Nunca eu conhecia de CD, e tem algumas das músicas que mais gosto da dupla, p. ex. Nuvens d'Água (acho perfeita), Coisa A-Toa (alusão à ditadura?), e outras. Me disseram que o F. Venturini é fã do Procol Harum, e realmente alguns solos de órgão dele fazem lembrar a banda inglesa.

- João Henrique Jr.

Que maravilha de matéria. Me transportei aos anos de ouro da música brasileira

- Sidney Ribeiro

Trabalho lindão. Parabéns à todos os envolvidos!

- Anderson Farias de Melo

O que dizer do melhor disco da música nacional(minha opinião). Tive o prazer em ver eles como dupla e a volta como trio em um shopping da zona leste de sampa. Lançamento do disco outra vez na estrada. Espero poder voltar a vê-los novamente, já que o Sa hoje mora fora do Brasil. E essa Pandemia, que isolou muito as pessoas. Obrigado por vocês existirem como músicos, poetas e instrumentistas. Vocês são F..., Obrigado, abracos

- Luiz antonio Rocha

Que maravilha Querido Paulinho Paulo Farat!! Obrigado por dividir conosco momentos tão lindos , pela maravilha de pessoa e imenso talento que Vc sempre teve, tem e terá, sempre estará no lugar certo e na hora certa ! Emocionante! Tive a honra de trabalhar muitas vezes com Vc, em especial na época do Zonazul , obrigado por tudo, parabéns pela brilhante carreira e que Deus Abençõe sempre . Bjbj

- Michel Freidenson

Mais uma vez um texto sensacional sobre a história da música e dos músicos brasileiros. Parabéns primo e obrigado por manter viva a memória dessas pessoas tão especiais para nós E vai gravar o vídeo desta semana! Kkkk

- Carlos Ronconi

Grande Farat!!! Bacana demais a coluna! Cheio de boas memorias pra compartilha!!!

- Luciana Lee

Valeu Paulo Farat por registrar nosso trabalho com tanto carinho e emoção sincera. Foram momentos profissionais muito importantes para todos nós. Inesquecíveis ! A todos os membros de nossa equipe,( e que equipe! ) Nosso Carinho e Saudades ! ???? ???????????????????? Guilherme Emmer Dias Gomes Mazinho Ventura Heitor TP Pereira Paulo Braga Renato Franco Walter Rocche Hamilton Griecco Micca Luiz Tornaghi Carlão Renato Costa Selma Silva Marilene Gondim Cláudia Zettel (in memoriam) Cristina Ferreira Neuza Souza

- Alberto Traiger

Depois de um ano de empresa 3M pude fazer o bendito carnê e comprei uma vitrolinha (em 12X) e na mesma hora levei Pirão, Quatro (Que era o novo), Es´pelho Cristalino e Vivo do Alceu, fiquei um ano ouvindo e pirando sem parar, depois vi o show do Quatro em Campinas. Considero o mais equilibrado de todos, sendo que sempre pendendo pro rural e nem tanto pro urbano, um disco atemporal podendo ser ouvido em qualquer situação, pois levanta o astral mesmo. No momento, Chuva no campo é ''a favorita'', mas depois passa e vem outra, igualzinho à aquela banda de Liverpool, manja????

- Ademilson Carlos de Sá

B R A V O!!! Paulo Farat não esqueça: “Afina isso aí moleque!” Hahahaha Tremendo profissional, sou teu fã, Grande abraço!

- Dudu Portes

Show é sensacional. Mas a s sensação intimista de parecer que a live é um show particular, dentro da sua casa, do seu quarto, é impagável. Parabéns família, incluindo Guarabyra e Tommy...

- Ricardo Amatucci

Paulo Farat vai esta nas lives do Papo Na Web a partir de amanha apresentando "Os Albuns Que Marcaram As Nossas Vidas"" Não percam, www.facebook.com/depaponaweb todas as terças-feiras as 20:00 horas

- Carlos Ronconi

Caro Luiz Carlos Sá, as canções que vocês fazem são maravilhosas, sinto a energia de cada uma. Tornei-me um admirador do trabalho de vocês no final dos anos 1970 com o LP Quatro e a partir de então saí procurando os discos de vocês, paguei um preço extorsivo pelo vendedor, os LP's "Casaco Marrom" do Guarabyra e "Passado, Presente e Futuro" (primeiro do Trio), mas valeu. tenho todos em LP's e CD's até o Antenas, depois desse só em CD's e o DVD "Outra Vez Na Estrada" exceto o mais recente "Cinamomo" mas em breve estarei com ele para curtir. A última vez que vi um show da dupla (nunca vi o trio em palco), foi no Recife no dia 16/04/2016 na Caixa Cultural, vi as duas apresentações. Levei dois bolos de rolo pra vocês, mas o Guarabyra não estava. Quero registrar que tenho até o LP "Vamos Por Aí", todos autografados, que foi num show feito no Teatro do Parque, as apresentações seriam nos 14,15 e 16/10/1992 mas o Guarabyra perdeu o voo e só foram dois dias, no dia do seu aniversário e outro no dia 16. Inesquecível. Agora estou lendo essas crônicas maravilhosas. Grande abraço forte e fraterno e muita saúde e sucesso pra vocês, sempre. P.S. O meu perfil no Facebook é Xavier de Brito e estou lá como Super Fã.

- Edison Xavier de Brito

Me lembro de ter lido algumas destas crônicas dos discos quando voce as publicou no Facebook em 2013, Sá. Muito emocionante reler e me emocionar de novo. Voces foram trilha sonora importantíssima dos últimos anos da minha vida. Sou de 1986, portanto de uma geração mais nova que escuta voces. Gratidão e vida longa a voces!

- Luiz Fernando Lopes

Salve!!! Que maravilha conhecer essas histórias de discos que fazem parte da minha vida. Parabéns `à Backstage e ao Sá! E, claro, esperando a crônica do Pirão. Esse disco me acompanha há mais de quarenta anos! Minhas filhas escutaram desde bebês e minha neta, que vai nascer agora em setembro, vai aprender a cantar todas as músicas!

- Maurício Cruz

com esse time de referências musicais (exatamente as minhas) mais o seu talento, não tem como não fazer música boa!!!! parabéns!!! com uma abraço de um fã que ouve seus discos desde essa época!

- nico figueiredo

Boa noite amigo, gostei muito das suas explicações, pois trabalho com mix gosto muito mesmo e assistindo você falando disso tudo gostei muito um abraço.

- Rubens Miranda Rodrigues

Obrigado Sá, obrigado Backstage, adoro essas histórias, muito bom, gostaria de ouvir histórias sobre as letras tbém, abç.

- Robson Marcelo ( Robinho de Guariba SP )

Esperando ansioso o Pirão de Peixe e o 4. Meu primeiro S&G

- Jeferson

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