Reportagem: Miguel Sá | Fotos: FreePik.com (Pvproductions - Wavebreakmedia - Osaba ) / Divulgação / Arquivo
Mesmo com simuladores de todo o tipo de equipamento analógico, com bom custo-benefício, altas taxas de amostragem na gravação do som e toda a flexibilidade e facilidade para o trabalho, alguns equipamentos analógicos ainda despertam o desejo dos profissionais de som. Por que isto acontece? O som é mesmo melhor? Os simuladores ainda não chegam no mesmo resultado? O preço compensa? Para saber a este respeito, a Backstage procurou três engenheiros de som premiados e com experiência de alto nível em ambos os formatos: Flávio Senna, Maurício Gargel e Arthur Luna.
Flávio Senna é engenheiro de som com incontáveis indicações e premiações no Grammy. Seu nome consta nos créditos de vários álbuns fundamentais da MPB. Além disso, ele também é sócio de um dos últimos grandes estúdios do Brasil, a Cia dos Técnicos, e atua no som ao vivo de alguns dos P.A.s mais exigentes do país, como Roberto Carlos e Ana Carolina.
O engenheiro de masterização Maurício Gargel é ganhador de um Grammy latino com Emicida, no álbum AmarElo, como engenheiro de masterização, além de ter trabalhos realizados com Arnaldo Antunes, Titãs, Karol Conka e Baiana System. Maurício hoje atua de olho no universo do áudio imersivo, em contato com as tecnologias mais recentes.
Arthur Luna, filho do também engenheiro de som William Luna Jr, é graduado pela Full Sail University, nos EUA. Durante a carreira, já trabalhou com artistas como Carlinhos Brown e Nando Reis, tendo sido premiado no Grammy latino nas categoria de Melhor Álbum de Samba/Pagode pelo disco Amor e Música da cantora brasileira Maria Rita, em 2018, e na categoria de Melhor Álbum de Rock/Música Alternativa com o disco AmarElo, do rapper brasileiro Emicida. Cresceu como engenheiro de som no estúdio Cia dos Tecnicos, no Rio de Janeiro, com amplo acesso a todo tipo de equipamento.
Evolução para o digital
Flávio Senna começou a carreira nos anos 1970 e acompanhou toda a evolução do áudio desde então. Ele utiliza tanto as tecnologias hoje consideradas “vintage” quanto os softwares de gravação e plug-ins das mixagens in-the-box. “Para mim, são coisas diferentes. Você abre um plug-in que simula um Neve 1073, por exemplo, e compara com o equipamento original. A sonoridade é completamente diferente. Não estou dizendo que é ruim ou boa, mas é muito diferente. O digital chegou para possibilitar edição, recall, e essas coisas todas são maravilhosas. Para mim, há sons que fazem muita diferença sendo analógicos e outros que não. Em algumas circunstâncias, eu não achei nada que me deixasse auditivamente tão feliz quanto o 1073 ou o compressor Neve 2554A. Nada como um equalizador API. Mas se eu faço uma mixagem toda in-the-box ou outra externa, tudo é diferente. Vai ter gente que gosta mais de uma ou de outra”, pontua Flávio.
Flavio Senna
Maurício Gargel recorda o momento em que os equipamentos digitais começaram a dominar os processos de trabalho, especialmente na gravação de áudio. “Eu lembro dos Alesis ADATs e TASCAM DA88. Não eram considerados melhores que a fita analógica, mas tiveram grande aceitação nos estúdios. Do ponto de vista de viabilidade, nas gravações ao vivo era mais simples utilizar gravadores digitais modulares. Logo depois, surgiram as workstations, que também simplificavam a logística das gravações ao vivo, além de permitir mais canais de gravação sem dobrar o orçamento”, explica.
Maurício Gargel
Aos 17 anos, Arthur Luna já tinha a carteira assinada como auxiliar de estúdio. Naquela época, o digital já dominava o mercado, mas, por trabalhar em um estúdio grande e tradicional como a Cia dos Técnicos, ele teve contato com todo tipo de equipamento, tanto analógico quanto digital. Arthur aprecia ambos e acredita que é possível alcançar resultados bem próximos, ainda que, como Flávio, os considere distintos. “Em relação à mixagem in-the-box, comparada à tradicional, com uma console Neve ou SSL, depende mais de você do que das ferramentas. Dá para alcançar resultados bem parecidos nos dois formatos. Pode ser que com a Neve ou SSL você leve menos ou mais tempo, depende da sua experiência com consoles analógicas. É difícil comparar e dizer se é melhor ou pior”, pondera.
Arthur Luna
Fita de duas polegadas ainda pode ser “a boa”?
Ainda hoje, há uma certa aura em torno da gravação analógica em fita. Maurício Gargel não compartilha totalmente dessa visão, embora reconheça sua relevância em alguns aspectos. “É difícil generalizar, pois há vários fatores envolvidos. Mas, de forma geral, eu diria que o uso de fita de duas polegadas não é o mais importante hoje em dia”, afirma o engenheiro de masterização.
Flávio Senna detalha as razões pelas quais a fita perdeu espaço no mercado atual. “Gravando em 96kHz/24bits no Pro Tools, você tem uma qualidade muito boa. Recentemente, remixei o álbum Samba Pras Moças (de Zeca Pagodinho - 1995), que foi gravado em fita analógica. Recebi os tapes, transcrevi, digitalizei, e foi uma experiência maravilhosa. O nível de magnetização da fita era alto, então o hiss era quase inexistente. O som da fita é outro, sem dúvida. Mas, com o preço que elas têm hoje, fica complicado justificar. Quando o Pro Tools era 16 bits, o som era ruim, e eu jurava que jamais trabalharia com ele. A fita era muito superior. Hoje, não vejo tanta vantagem em gravar em fita. O que temos no digital é excelente. Não sinto tanta saudade”, explica Flávio.
Quando Flávio Senna começou, havia uma busca incessante pela diminuição de ruídos como chiados, distorções e interferências diversas que equipamentos analógicos, incluindo as fitas, faziam no som. Mas quem começou depois, como Arthur Luna, acaba valorizando características sonoras que se perderam no digital, ainda que concorde que os benefícios trazidos pelo formato digital hoje sejam mesmo insuperáveis. “A diferença entre gravar em uma máquina com fita de duas polegadas é bem audível comparado com o Pro Tools, mas (a gravação digital) é muito bem feita e soa muito bem. É perceptível o som melhor gravando em fita, em máquina(analógica). Se fosse economicamente viável, tivéssemos os recursos de edição e conseguíssemos ter a agilidade do Pro Tools quando estivesse na fita seria o melhor dos mundos. Tem alguns sistemas, como o CLASP (sistema que integra a precisão de edição das DAW e fitas analógicas, transformando estas praticamente em um periférico ou um plug-in que insere as características sonoras da fita no som usando as fitas reais), que é um sistema de integração entre Pro Tools e fita. Mas continua sendo uma coisa com um preço alto e que acaba sempre encarecendo as produções e adicionando mais tempo de estúdio”, lamenta Arthur.
Inbox x console
Apesar de ser um adepto do uso de console. Arthur faz a grande maioria de seus trabalhos “in-the-box”. “Apesar de gostar do uso de consoles analógicas, Arthur Luna faz a maioria de seus trabalhos in-the-box. “Acho que é uma questão de costume e necessidade. No processo de captação, por exemplo, você pode substituir a função de um console por vários prés, como Neve, API ou SSL. Já na mixagem, 90% das minhas produções são in-the-box. A escolha entre uma console analógica ou o digital depende do som que você procura. Depende mais de você que das ferramentas. Dá para alcançar resultados bem parecidos nos dois. Pode ser que com a Neve ou SSL você leve menos tempo ou mais tempo, depende do seu tipo de experiência com consoles analógicas. É um pouco difícil essa comparação, se é melhor ou pior. Eu, por exemplo, acho que mixo melhor em console analógica do que in-the-box. Mas é raro ter um artista com orçamento e tempo de mixar em uma console tradicional”.
Flávio Senna também aprecia as consoles, mas reconhece as vantagens práticas do digital. “Quando você abre na console, o som é outro. Eu gosto muito do in-the-box. No início do digital, ficava preocupado porque algumas mixagens no Pro Tools eram ruins, mas hoje em dia é diferente. É muito bom", afirma.
Maurício Gargel observa que as consoles ainda fazem diferença no processo de gravação, especialmente pelos pré-amplificadores e pelo fluxo de trabalho mais rápido. Contudo, ele acredita que é possível montar um bom estúdio sem uma console analógica, desde que se avalie a natureza do trabalho a ser feito. “Se você não for gravar vários canais ao mesmo tempo, não precisa investir em muitos prés ou em uma console grande. Equipamentos modulares podem atender perfeitamente”, aponta.
Simuladores digitais: eles “chegam lá”?
Antes de mais nada, Maurício Gargel ressalta que, em um vintage original, conta também o estado de conservação do equipamento. Feita a ressalva, ele coloca que não acredita em uma emulação perfeita. E nem acha que isto deve ser uma busca. “Pra mim o digital tem um potencial muito maior e é, provavelmente, uma perda de tempo ficar tentando imitar o resultado de um processador analógico e atingir a perfeição. Quando falamos de equipamentos antigos, temos que entender que cada um tem um som memo sendo da mesma marca e modelo. Isso se deve à diferença que naturalmente existiu na manutenção desses equipamentos ao longo do tempo. Um LA2 soa diferente de outro LA2 que teve outra história”, aponta.
Flávio Senna teve contato com boa parte dos objetos de desejo dos amantes do vintage. Ainda que não abra mão de um bom pré-amplificador, não deixa de usar plug-ins com simulações obtendo bons resultados. Mas, no caso dos reverbs, os plug-ins não chegam nem mesmo ao resultado, por exemplo, dos outboards digitais, como a Lexicon 480. “Eu tenho muita dificuldade no plug-incom o reverb. Eu não tenho nada igual ao reverb na Lexicon 480 ou noTC 6000. O Nando( baixista do Roupa Nova) tem um estúdio muito bem montado. Ele tem os outboard porque quando mostrei para ele, também chegou à conclusão que precisava dos outboard mesmo. Então ele comprou uma Lexicon 480 e uma TC6000. Não consigo nenhum plugin de reverb parecido com isso. Nem o plug-in da Lexicon. É outra coisa. Não é que seja diferente não,é diferente muito melhor (risos). A não ser que você queira um efeito específico, uma automação... Fora isso não tem nem como chegar perto. Um reverb de plugin tem as vantagens de poder automatizar ele. O delay não. Todos (de plug-in) funcionam muito bem”.
Já quanto aos reverbs analógicos vintage originais, Senna não hesita em dizer que só valem a pena, assim como os plug-ins digitais, com intenções específicas. “Ainda temos, no estúdio (Cia dos Técnicos),as EMT. A não ser que você queira uma gravação simulando os anos 60... eu acho que tem um nível muito baixo, muito ruido, não tem alta frequência e o menor tempo de reverb que elas tem é muito grande. Assim, acaba tendo que colocar gate para diminuir esse tempo... então acho que, a não ser que seja uma coisa muito específica... Trabalhei muito com as EMT, É bacana usar um reverb de placa ou de mola em um piano, um violão... Mas com 130 canaisvocê não consegue mixar tudo (usando máquinas de reverb com menos controle de parâmetros). Eu tenho o setup que eu gosto muito: O TC, a 480 e a Lexicon 300. As três que ficam ligadas o tempo inteiro. Esse é o setup que eu uso e fica ligado no patch o tempo todo.
Arthur Luna gosta dos resultados dos plug-ins da Universal Audio. “Tem coisas muito boas. Unison, as simulações de prés da Universal Audio (UAD) soam muito bem, mas vou até fazer de novo um teste cego... Fiz há um tempo atrás de um Neve 1073 de verdade com um UAD, mas é aquilo... uma simulação. Claro que quando vem o equipamento de verdade eu consigo distinguir. Apesar de ser muito boa a simulação, não e tão legal como a analógica. Entre as simulações de compressão de válvula, uso muito o Teletronics LA2A, da Universal Audio, e também o Fairchild 660 e 670. Tem muito fabricante legal de plugin. Waves é legal, assim como Plugin Alliance e Sountoys, mas eu tenho uma facilidade usando os da UAD para alcançar os sons que eu imagino. Tem ainda outros tipos de compressores plug-inda própria UAD qe eu uso muito, como o dbx 160 e o Neve 2254, ou o Shadow Hills, que eu gosto bastante, que é um mastering compressor da Plugin Alliance. São representações muito boas que fazem com que eu alcance sempre o som que estou imaginando. Sempre tenho a sensação que os equipamentos de verdade soam melhor, mas me dou muito bem com plugin. Mixo 90% das minhas coisas in-the-box e me sinto satisfeito com o que eu alcanço”. Na Cia dos Técnicos, Arthur tem à disposição equipamentos reais como as Lexicon 480L e o Harmonizer, da Eventide, além dos EMT 140 e 250 entre outros, mas usa também os plug-ins. “As melhores representações de reverb que eu consigo imaginar são as da UAD”.
Arthur Luna ainda comenta sobre os microfones com DSP que fazem simulação dos transdutores clássicos: “tem muito microfone de simulação barato mas quando você compara até com uns microfones não tão caros, como um Neumman U-87, um U-47, ou os mais caros, como um Sony C-800G ou um ELA- 251, e compara com essas simulações, que tem um preço bem menor, até tem alguma coisa parecida sim, mas é audível a diferença. De verdade”.
O vintage indispensável
Quando se trata de equipamentos vintage indispensáveis, os profissionais têm opiniões variadas. Maurício Gargel aponta o limiter Urei 1176 e o Harmonizer H3000 como equipamentos que marcaram seu trabalho, mas não considera que há equipamentos vintage indispensáveis para trabalhar. Já Arthur Luna destaca o pré-amplificador Neve 1073 como seu favorito. “As simulações são boas, mas o 1073 é o único equipamento que considero indispensável. O resto, como compressores e reverbs, consigo substituir com as simulações.”
Mas e na hora de montar um estúdio hoje em dia, ainda vale a pena comprar esses caríssimos objetos do desejo? Eles ainda fazem diferença a ponto de receber investimento? “Depende do tamanho do dinheiro que você tem. Um Neve 1073 custa muito caro. De repente, um estúdio todo custa a mesma coisa. Então para que você vai ter um par desses? Vai do que você se propõe. Framklim Garrido diz que a qualidade final do seu áudio é resultado do pior componente que você tiver no sistema. Se o pré é Neve, a sala é maravilhosa, o músico é maravilhoso mas o cabo é ruim, vai ficar tudo com o som daquele cabo ruim. Não tem jeito. Hoje se pode perder tempo colocando a culpa no digital, mas o problema é que as pessoas estão fazendo de qualquer jeito. Estamos falando de equipamento, mas esse equipamento tem que receber um sinal. Se esse sinal é de m,á qualidade, pode ser digital ou analógico que vai ser ruim. Acho que o digital é importante, necessário, não tem volta. Ainda usamos o analógico não é para ser melhor. É para ser diferente”, diz Flávio Senna.
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