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Elis 1972

29/03/2021 - 10:44h
Atualizado em 29/03/2021 - 17:35h

Reportagem: Miguel Sá / Fotos: Divulgação

 

Os tempos mudam, o mercado fonográfico acompanha, a tecnologia avança, os gostos se alteram, mas alguma coisa permanece. Elis 1972 é o quarto dos álbuns de Elis Regina a serem remixados e “traduzidos” para os tempos atuais. Os anteriores foram Elis & Tom, Falso Brilhante e Elis, o último de estúdio lançado pela cantora.

 

Essa tradução, no entanto, está longe de significar compressões absurdas e adição de frequências inexistentes no som original. É um trabalho delicado para chegar ao que os produtores/engenheiros de som/músicos queriam na época.  No repertório, alguns clássicos, como a primeira gravação dela de Águas de março (Antonio Carlos Jobim, 1972), Bala com bala (João Bosco e Aldir Blanc, 1972) e Casa no campo (Tavito e Zé Rodrix).

 

Este também foi o primeiro álbum que a cantora fez com a superbanda formada por Paulo Braga na bateria, Luisão Maia no baixo, Cesar Camargo Mariano nos teclados e Hélio Delmiro na guitarra.

 

 

Planejamento

No dia 17 de março, Elis estaria fazendo 76 anos de idade. Este foi o dia do lançamento da versão remixada de Elis 1972, o primeiro álbum dela arranjado por Cesar Camargo Mariano com a produção de Roberto Menescal. O projeto já estava pronto desde 2014, mas só foi lançado agora devido ao cuidado para não trombar com outros relacionados à cantora nos anos anteriores.

 


João Marcello Bôscoli

 

Desde a remixagem de Elis & Tom que a mesma equipe – o produtor João Marcello Boscoli, Luis Paulo Serafim na remixagem e Carlos Freitas na masterização – trabalha na adaptação dos álbuns da cantora aos tempos atuais. Uma adaptação que envolve mais detalhes técnicos que alterações na sonoridade. “Se você pegar o disco de 72, tinha a fita, depois o acetato e depois o vinil. Estas eram etapas de geração de ruido. O objetivo é sempre deixar o áudio o mais perto possível do que foi ouvido naquele momento da mixagem (original) sem mexer no trabalho que foi feito na época”, detalha João Marcello.

 

Os estágios do trabalho vão desde a digitalização das fitas master originais para o ambiente digital – os quatro canais do Elis 1972 foram transcritos para um bounce de Pro Tools - passam pela remixagem e chegam até a masterização nos formatos correntes. “Eles digitalizaram tudo da melhor maneira possível. Eu não vi isso tudo pessoalmente”, diz João, se referindo à transcrição dos masters feitos pela gravadora.  “Todo o processo é feito buscando o (som do) estúdio. A gente mixa, manda para o Carlos Freitas e ele faz a entrega de todos os formatos. Creio que temos ferramentas melhores que na época (em que o álbum foi feito)”, ressalta o produtor.

 

 

 

Mercado fonográfico

Mesmo desde o início dos relançamentos de Elis, em 2004 é possível perceber as mudanças que ocorreram no ambiente comercial da música. Elis & Tom foi lançado em DVD Audio e CD pela Trama sob licença da Universal Music. O atual foi lançado pela Universal Music também em CD, mas com destaque para os formatos do vinil e stream, sendo que este último tem também uma versão em HD. Já há algum tempo que a Trama não opera mais como uma gravadora tradicional, tendo hoje apenas o estúdio e a administração do catálogo. “Desde 2013 a mídia física não rendia mais”, diz João Marcello. “Também não temos mais artistas sob contrato. Temos mais de três mil músicas, mas não produzimos a parte física. Não fazia sentido prosseguir. Queríamos fazer isso em 2010, passou 2011 também até por um certo apego, mas chegou um momento em que olhamos um para o outro e entendemos que as pessoas não estavam comprando mais (a mídia física). Temos o estúdio, que é a minha grande paixão. Temos essas obras que remasterizamos e produzimos 15, 20 singles por ano”, conta. Tecnicamente o produtor percebe que, mesmo a versão para streaming, já chegou a uma qualidade técnica mais que suficiente.

 

 

 

Mixagem

Luis Paulo Serafim, engenheiro de som responsável por alguns dos álbuns de maior vendagem do Brasil e vencedor de Grammys latinos, conta que no Elis & Tom havia mais possibilidades de interferir no som por ter vindo em oito canais, mas esse nunca foi o objetivo. “Fora oito canais gravados pelo Humberto Gatica em Los Angeles. No Elis 1972 são quatro canais: batera e baixo em um canal, voz em canal separado, teclados do Cesar e harmonia em outro e, quando entra orquestra, toda a harmonia de um lado e orquestra no outro”.

 


Luis Paulo Serafim

 

Para ter a referência, Luis Paulo usou a própria gravação original. “Eu colocava o disco na vitrola para seguir a vibe do que os técnicos de som da época fizeram. Procurei seguir fielmente os pans. O que nós queríamos era conseguir trazer aquele som que foi ouvido no estúdio, com aqueles graves e agudos que eram retirados no corte do vinil. Não acrescentamos nada. Deixei mais os graves que eram sacrificados. A qualidade do vinil dependia muito da matéria prima, mas eles já mixavam pensando nesse momento do corte”, comenta.

 

O engenheiro de som ressalta que, no início dos anos 70, eram poucos os canais disponíveis e os músicos tocavam juntos. A voz já veio no master multicanal com efeito gravado e é necessário ficar atento à dinâmica dos músicos para uma mixagem que tem que ser trabalhada em cima dos grupos de instrumentos reunidos em cada um dos quatro canais. “Os músicos já tocavam se mixando. Estavam acostumados a tocar se ouvindo. A captação foi maravilhosa. Naquela época o bumbo e baixo já vinha bem timbrado. Se trabalhava tudo junto”.

 

O trabalho de remixagem foi feito no então estúdio Trama (hoje, em outro endereço, estúdio Nacena Trama), em 2014, usando os recursos da console Neve VX60. Pelo conceito de pouca interferência no som original, foi usado pouco processamento. Basicamente a equalização da Neve, um pouco de de-esser e os reverbs e delays da Lexicon 480. “O som ficou lindo”, comemora Luis Paulo, chamando atenção para os graves.

 


Carlos Freitas

 

Masterização

O engenheiro de masterização Carlos Freitas ouviu o disco com João Marcello para ajustarem a ideia da master. “Se você ouve o vinil, não tinha muito grave. Para o CD e o streaming, poderíamos ter esses graves mais próximos do que era realmente a mix. Então a ideia foi manter a estética original de 72, sem alterar drasticamente os timbres, e deixamos um pouco mais solto, sem muita compressão, algo que é feito muito nas masters atuais”, detalha Freitas.

 

Carlos Freitas ressalta que Elis 1972 não é uma remasterização. É uma masterização feita a partir de uma mixagem original, como seria qualquer álbum novo. “Ele não foi remasterizado do tape original, então foi feito um trabalho todo de remixagem antes. Já chegou nos formatos atuais para mim. Não peguei o tape antigo como foi o Transa, o Refazenda, o Coisas do Moacir Santos, onde foram feitas restaurações do tape original e depois uma remaster. Esse é um trabalho um pouco peculiar, porque assim como no Elis & Tom eles pegaram os tapes originais e remixaram”.

 

Vale dizer que, no Elis & Tom, o próprio Carlos Freitas foi o responsável pela restauração do som, com processamento do chiado intenso. “Eles me enviaram os oito canais, eu restaurei, tirei ruídos e chiados canal por canal - lembro que tinha bastante chiado - e depois eles mixaram em cima desses áudios restaurados. No caso do Elis 1972 já recebi a master pronta em L&R e não tive nenhum contato com o original. Mas ambos os trabalhos foram super bem remixados, o João foi muito criterioso em manter a sonoridade original e fiquei muito feliz de ter feito parte disso”.

 

A entrega do trabalho é feita em diversos formatos, desde a master específica para o vinil até a em HD para os formatos de streaming de alta qualidade. No primeiro trabalho de remixagem, o Elis & Tom, as entregas foram feitas para CD e DVD Audio 5.1, como explica o engenheiro de master Carlos Freitas. “As masters foram feitas em 96kHz/24bits para lançamento em CD e DVD áudio, que na época era uma novidade tecnológica. No caso do Elis 1972, os formatos específicos foram streaming, vinil e uma master para ultra HD 192K/24 bits, a mais alta resolução digital possível. Eu não acho que há mais limitações para a qualidade do áudio. O que mudam são os formatos e codecs utilizados pelas plataformas para fazer a transmissão. A forma de masterizar Elis & Tom foi idêntica à forma de masterizar Elis 1972. O que mudou mesmo foram os formatos finais para distribuição”.

 

No processo de masterização de Elis 1972, foram usados, principalmente, equipamentos analógicos como os equalizadores e compressores da Masselec e Manley, mas Carlos Freitas não tem nenhum problema em fazer uma master inteiramente digital. “Os equipamentos são ferramentas. Ferramentas não se discute, cada um tem as suas e as utiliza da melhor maneira possível. Para mim, equalizar é equalizar, comprimir é comprimir, não importa se estou fazendo no âmbito analógico ou digital. Eu gosto de utilizar os equipamentos analógicos porque estou acostumado, criei uma forma de trabalho que funciona, mas faço muitas masters digitais. O importante hoje é saber usar corretamente cada ferramenta. O que mudou muito de 20 anos pra cá foram os equipamentos de eliminação de ruídos. Há 20, 30 anos, lembro que quando chegaram os Cedars na Cia de Áudio (primeiro estúdio de masterização do qual Carlos Freitas foi sócio, nos anos 90) eram equipamentos de última geração que custavam 7, 8 mil libras cada um. Hoje você tem o sistema RX, da Isotope, que é excelente e custa U$700,00”, se espanta.

 

 

Vinil ontem e hoje

Hoje em dia, chama a atenção a volta do vinil como um formato comercial de música, ainda que em edições especiais e limitadas. A tecnologia para o corte de vinil hoje é a mesma da época em que era a mídia principal. De acordo com Carlos Freitas, o que acontece é que, hoje, as máquinas tem componentes melhores. “A qualidade depende demais do acetato utilizado. Hoje, na master que foi feita para vinil, foi preservada o máximo possível a mixagem original. Por ser um disco mais antigo, não precisa ter aquele volume absurdo que se exige hoje em dia. Mas a tecnologia de corte de vinil hoje é a mesma de antes”.

 

De acordo com Carlos Freitas, para um bom corte de vinil é aplicado um filtro elíptico para a integração em mono das frequências abaixo de 330hz, além da aplicação de corte abaixo de 30 Hz. Também são feitas pequenas correções de equalização em 8khz. E, sim. Hoje a qualidade do vinil no Brasil é melhor. “O Brasil nunca foi referência no ramo de fabricação de vinis e, entre a as décadas de 1970 e 1980, os vinis eram produzidos com PVC reciclado das sobras das bordas após a prensagem, com péssimas masterizações. Além disso, a matéria prima do vinil era importada dos EUA, na base do dólar com o preço muito elevado. Inclusive, durante a crise do petróleo, chegou-se a produzir vinis de 90g de péssima qualidade. Essas limitações econômicas e técnicas das próprias gravadoras da época tornaram o Brasil um péssimo produtor de vinil comparado, logicamente, com os caríssimos importados de 130g a 200 gramas, com excelentes processos de masterização e prensagem. Mas ainda assim, houve algumas prensagens (no Brasil) de 130 a 160g com vinil da melhor qualidade, com a fórmula correta do PVC. O som é o mesmo em um disco de 90g, 120g ou 180 g e realmente, é correto afirmar que qualquer que seja o peso do disco, o sulco terá suas dimensões padrão.  No caso específico da Elis, foi feita uma masterização correta, assim como o uso de material bom para a confecção dos discos de vinil, tornando-os com o som igual à mixagem, como diz o João Marcello”, conclui o engenheiro de master.

 

 

 

Permanência

No meio dos debates a respeito de analógico, digital, qualidade sonora, formatos finais, remuneração dos artistas pelas plataformas de streaming, criatividade e inovação na música pop atual e todas as mudanças que acontecem no dia a dia no mercado fonográfico, João Marcello Bôscoli fica feliz com a permanência da obra de Elis Regina 40 anos depois da morte dela. “É uma honra ver que quarenta anos depois de sua morte ela ainda é lembrada. Quantas outras cantoras não se falam mais a respeito?. Temos que saudar essa iniciativa da Universal Music”.

 

 

 

 

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