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Cesar Portela e o milagre analógico

06/04/2023 - 15:26h
Atualizado em 10/04/2023 - 09:14h

 

Quando se fala em áudio e música, muitas vezes se faz a separação entre a “tecnologia” e a “arte”. Mas será que essa separação realmente existe? Afinal de contas, na voz ou no instrumento de cada artista existe a influência do timbre de algum equipamento: um microfone, um pré-amplificador, a madeira de um violão ou o captador de uma guitarra. Isso só para ficar em equipamentos analógicos, que é a área de atuação de Cesar Portela: um dos mais renomados e conhecidos profissionais do áudio e eletrônica do país. “Sempre trabalhei na área musical e com restauração. Nunca trabalhei em outra área”, ressalta o projetista.

 

A afirmação veio após ser perguntado se, em algum momento da vida, teve de ganhar o dinheiro de cada dia em alguma função não ligada ao som da música. Mas isso não aconteceu nem mesmo antes de se tornar profissional, como explica Cesar Portela. “Aos 14 anos criei meu primeiro mixer com quatro canais, duas entradas phono para toca-discos e dois gravadores cassete. Também customizava toca discos com micro lâmpadas de relógio Casio, instaladas atrás das cápsulas para os DJs verem melhor os sulcos do disco, além de um mecanismo que desconectava o motor para já deixar o disco no ponto certo”, relembra.

 

Esse interesse começou logo no final da infância, durante as visitas que fazia ao primo mais velho Marcos Tadeu, que trabalhava em manutenção de equipamentos para redes de TV em Recife, terra natal do restaurador e desenvolvedor de equipamentos.  “Eu ficava fascinado pelos circuitos eletrônicos aos quais tinha acesso por ele”, relembra Cesar Portela. “Ficava maravilhado com aquilo tudo e as possibilidades que trazia”. Foi quando, ainda criança, começou a pedir, de aniversário, as ferramentas, alicates e ferros de solda com os quais passou a se divertir enquanto aprendia.

 

 

 

 

Pouco tempo depois, já na época em que as habilidades com as ferramentas começaram a permitir com que construísse aparelhos como o mixer caseiro para DJs, Cesar Portela passou em frente a um estúdio de gravação profissional da cidade. Havia algumas pessoas batendo papo na porta desse estúdio e ele percebeu que o assunto era do seu interesse. Ele não pensou duas vezes: “tive cara de pau, puxei assunto e comecei a perguntar. Vendo meu interesse, me chamaram para entrar, apresentaram o estúdio e me convidaram para assistir a uma sessão de gravação. Lembro como se fosse hoje, fiquei maravilhado com o trabalho de produção musical voltado aos equipamentos”, se emociona Cesar Portela.

 

Ao ir para o ensino médio, a decisão já estava tomada: Cesar Portela foi estudar eletrônica. “Na escola era bem enfatizado o áudio, o que eu achei ótimo. Depois eu fui trabalhar já voltado para manutenção e equipamentos porque o meu negócio sempre foi áudio. Não sei o que é outro trabalho. Me estabeleci na manutenção dos estúdios Estação do Som e Somax, da gravadora Rozenblit, os maiores de lá na época. No primeiro eu era fixo. No segundo, atendia demandas especiais”, enfatiza Cesar Portela.

 


O Deep Blue chegou a vender 200 peças

 

Os anos estudando e trabalhando na manutenção de equipamentos em estúdios importantes de Recife resultaram em acúmulo de conhecimentos e no aprofundamento da paixão de Cesar Portela pela eletrônica no áudio. Tanto que começou a querer fazer mais que apenas consertar equipamentos.  “Quando comecei a fazer restaurações de equipamento históricos, foi por amor à história e com o objetivo de guardar a memória da música e dos equipamentos musicais. Minha paixão pela restauração de equipamentos históricos e pela criação de equipamentos novos e originais nasceu do meu interesse de entender a mente dos projetistas que fizeram equipamentos hoje considerados históricos. Estudei muito, principalmente os trabalhos do Rupert Neve. Curiosamente por volta dos anos 1990 a 2000 os equipamentos analógicos não estavam sendo valorizados porque havia um interesse maior nos equipamentos novos, era a febre da automação. Mas eu continuei me aprofundando no conhecimento dos equipamentos históricos”, enfatiza o criador e desenvolvedor de equipamentos.

 


Cesar Portela projetou e vendeu, com sucesso, pré-amplificador feito a mão com peças selecionadas

 

Após anos se desenvolvendo, estudando e tendo sucesso no seu trabalho no Recife, Cesar Portela se mudou para São Paulo, onde começou a desenvolver projetos importantes para estúdios renomados e também para colecionadores. A preocupação com o aprofundamento do conhecimento tecnológico, todo o aprendizado, evolução e os resultados do trabalho de Cesar Portela permitiram a ele que pudesse criar, montar, e vender um equipamento totalmente projetado por ele  que rivalizava com os melhores e mais famosos do mundo segundo profissionais da área e as maiores produtoras de áudio de São Paulo. Era o pré-amplificador Deep Blue Audio. “O equipamento era feito à mão, diretamente por mim, com todos os componentes selecionados e importados pessoalmente. Comecei a comercializar em 2013, mais ou menos na mesma época em que cheguei a São Paulo. Foi um primeiro projeto que já chegou vencedor. Teve uma aceitação maravilhosa. Ter vendido perto de 200 Deep Blue Audio foi uma vitória considerando tudo no Brasil. Depois eu parei porque estava ficando sem tempo para me dedicar às restaurações”, lamenta Cesar Portela.

 


Deep Blue

 

 

Clientes

Os resultados como desenvolvedor e restaurador fizeram com que Cesar Portela mostrasse a quem trabalha com áudio em alto nível que ele é um profissional necessário para o mercado. Com os excelentes resultados das restaurações e criações de equipamentos a reputação de Cesar Portela como um especialista no analógico se consolidou. Ele começou então a fazer trabalhos em outros lugares nos quais suas competências se encaixavam como uma luva, como o Museu da Imagem e do Som (MIS), em São Paulo. A instituição tem um acervo de mais de 200 mil peças, principalmente audiovisuais, de fácil acesso para pesquisadores, tanto presencialmente como pela internet. Cesar Portela foi chamado por causa de um microfone Shure Unidyne 556 de 1951 doado ao acervo do museu. Ele foi o responsável pelo trabalho de restauração da peça.

 


Shure Unidyne

 

Patrícia Lira, responsável pelo Centro de Memória e Informação (CEMIS) do Museu, relembra o trabalho com Cesar Portela: “o proprietário doou esse microfone e o Cesar fez essa restauração que deixou o microfone funcional, mantendo as características originais da peça que hoje está no nosso acervo”, diz.  Cesar Portela explica como trouxe o Unidyne de volta sem alterar as características originais. “A parte interior e o funcionamento do original nada tem a ver com a reedição atual, que só tem o visual. Esse foi o primeiro microfone a ser usado ao vivo que não gerava realimentação. Isto por causa de um sistema de cancelamento em câmara acústica que ele tinha. Dentro da restauração, a parte mais complicada, com relação a microfones, é a capsula. Ela é que dá a identidade sonora e determina o valor histórico e financeiro da peça. Alguns restauradores ao redor do mundo substituem o diafragma, mas aí perde valor histórico e monetário. Eu desenvolvi uma técnica para restaurar a cápsula original”, expõe.

 

A repercussão do trabalho chegou ao departamento histórico da Shure, que tomou conhecimento de todo o processo de trabalho de Cesar Portela, o que gerou um contato intenso e muita troca de ideias entre a fábrica e o restaurador. “Mandei o resultado em áudio e fiquei muito feliz com a resposta: me mandaram uma carta na qual falaram que o resultado era exatamente o esperado do microfone original”, diz Cesar  Portela, sem esconder o orgulho. Este tipo de trabalho o levou a se estabelecer, definitivamente, como um dos profissionais mais famosos e requisitados no Brasil, fazendo trabalhos de restauração para produtores, artistas e colecionadores como Roberto Frejat, Gilberto Gil , Dudu Borges, Pedro Mamede, Thiago Bianchi e outros restaurando microfones das décadas de 50,60,70 como os AKG C-12, Neumann U47 valvulado, o U67 e o M49.

 


Neumann M50

 

Ainda no MIS, Cesar Portela começou também a passar o conhecimento adquirido em anos de experiência. Ele ministrou um workshop no qual foi restaurada uma máquina de fita de rolo de ¼ de polegada do museu, como explica Patrícia Lira. “Cesar Portela deu um curso para a equipe de conservação, que é muito pautada na higienização e acondicionamento”. O curso teve uma parte teórica sobre equipamentos de gravação históricos, com a história da gravação e a técnica dos gravadores de áudio, e uma parte prática. Nesta, Cesar e os funcionários pegaram um gravador e reprodutor de fita de rolo que estava inativo e o colocaram novamente em condições de funcionamento, se tornando também aptos a operá-lo. Hoje ele é usado pela equipe do Museu para ter acesso a gravações em fita analógica, inclusive para digitalização do acervo. “Fazemos um processo interno no qual digitalizamos essas fitas para dar acesso ao conteúdo”, detalha Patrícia, ressaltando que o MIS está de portas abertas para receber as solicitações dos pesquisadores tanto online, no site do museu, como presencialmente.

 

 

Desenvolvendo microfones

Voltando ao terreno dos transdutores, Cesar Portela não se restringe à restauração. Ele desenvolveu um equipamento específico para captar sons subgraves abaixo de 100Hz. O equipamento foi construído a partir de uma demanda da série de animação Meu Amigãozão, série animada canadense-brasileira criada por Andrés Lieban, de grande sucesso na América do Sul, veiculada também com êxito no Canadá e Europa. Marcelo Cyro, que trabalha com sonoplastia, mixagem e sound design na Panela Produtora, pediu especificamente a Portela este microfone para captar frequências mais baixas. “Era uma cena com muito grave e muito sub, com barulhos de pedra. Eu disse ao Cesar que não tinha microfone para isso e perguntei o que poderia fazer para gerar esse sub. Ele então me falou que construiria esse microfone. É como um microfone de contato que capta abaixo de 100Hz. Agora uso constantemente e acabei de utilizá-lo em outro longa de animação”, expõe Cyro.

 


Marcelo Cyro pediu um microfone apenas para as frequências mais graves

 

Além do microfone para captar sons subgraves, o projetista Cesar Portela também criou um microfone subaquático para a mesma animação. Este tipo de microfone é disponível no mercado e relativamente comum, mas nenhum oferecia as especificações que Marcelo Cyro precisava para o filme. “Fica muito melhor. Dá muito mais opções para equalizar, se for necessário. É como aquela história de ‘consertar na mix’. Isso não existe. Fica muito melhor com uma captação adequada”, esmiuça o sound designer.

 

 

 

Técnica inédita para recuperar fitas analógicas

Cesar Portela percorre ainda outros caminhos possíveis de atuação no terreno analógico, indo além dos pré-amplificadores e microfones. Ele desenvolveu uma máquina que substitui os tradicionais fornos utilizados para permitir com que as fitas analógicas deterioradas sejam reproduzidas. O processo atual permite uma reprodução limitada antes que a fita estrague de vez. “Estamos em um país tropical. Neste clima, os aglutinantes dos tapes, que são uma espécie de cola, tendem a se dissolver mais rápido. Fica tudo uma geléia. Para conseguir tocar um tape assim se usa uma espécie de um forno que controla a temperatura por um termostato simples. Tem uma tabela para cada fita. Por exemplo, a 3M deixa um número determinado de horas, e assim por diante, mas esse processo tem um percentual de insucesso e perda de material muito grande”, explica Rozenblit, curador do acervo da gravadora. Ele pediu a Cesar Portela uma solução que permitisse o maior número possível de reproduções dos suportes analógicos porque não tem a intenção de descartar as fitas.

 

A demanda da curadoria do acervo da gravadora Rozenblit, uma das mais importantes do país  no seu pleno funcionamento, entre 1954 a 1984, com um acervo bastante representativo da música brasileira, fez com que Portela produzisse a solução. “Para isto, fiz uma máquina dinâmica. Você pega o tape e carrega ele na máquina, que trabalha em dois ciclos. O primeiro é térmico: a máquina varia a temperatura de forma ascendente e descendente durante um período de três horas. Isto serve para secar a umidade do aglutinante e deixar a fita em condição de desenrolar sem aquele grude. O segundo turno é um processo foto térmico no qual o operador da máquina carrega a fita. A mecânica da maquina se assemelha a de um  gravador de  carretéis abertos, só que voltando a fita. Enquanto a fita volta bem devagar, uma emissora de raio ultravioleta faz um ‘bombardeio’. A velocidade, a tensão mecânica da fita e o fluxo do UV, tudo isso é controlado. Quando termina esse segundo ciclo a fita está pronta. No primeiro ciclo desgruda e no segundo estabiliza o aglutinante, que é tipo uma cola”, detalha Cesar Portela.

 

No período de experimentação em andamento já foi possível constatar que a durabilidade da fita magnética, depois de restaurada pela máquina criada pelo projetista, é maior do que quando são usados outros métodos de restauração comuns no mercado. Cesar Portela detalha: “No método tradicional a fita dura no máximo um mês, depois estraga novamente. Com meu método  a durabilidade da fita é muito maior. Ainda não sabemos exatamente o quão maior, porque nenhuma fita estragou ainda, mas já podemos ver que é bem maior do que quando é usado o método tradicional”.  Ricardo Carvalheira, sócio da IAIDigital, empresa que digitaliza acervos artísticos, incluindo arquivos em áudio, com ampla experiência em restauração e transcrição de áudio analógico para plataformas digitais, se entusiasma ao descrever o processo: “Conheci o Cesar por conta de uma máquina Studer que eu estava vendendo. Ele foi quem verificou a máquina para o comprador. Ao conversar com ele já percebi que tinha muito conhecimento. Nunca vi esse processo de restauração de fitas em lugar nenhum. Mais que um  restaurador e desenvolvedor de equipamentos, Cesar é muito criativo. É um criador de processos”, determina.

 

 

Colunista e revisor técnico: desenvolvendo as letras

Clement Zular, da empresa Áudio Portátil, trabalha com gravação ao vivo, inclusive de música erudita, e finalização de trilhas orquestrais para cinema e musicais, além de ser um dos responsáveis por trazer o formato Dolby Atmos para o Brasil. “Conheci o Cesar em um almoço com amigos do áudio há muito tempo. É um excelente profissional, muito cuidadoso com a condição do equipamento e seu perfeito funcionamento. Desde então temos conversado por muitas vezes assuntos profundos ligados a eletrônica e áudio”. Um dos assuntos que conversam é sobre a permanência dos equipamentos analógicos na era do digital. “Desde 1995 no estúdio Anonimato, migrei para o digital. Tinha também duas máquinas analógicas de 24 canais para fitas de duas polegadas à disposição sem custo extra, inclusive emprestando as fitas, mas que ninguém em anos quis usar. Talvez por termos uma coleção de prés, compressores processadores analógicos que supriam essa necessidade. Sempre busquei o melhor desses dois mundos simultaneamente. Pizza de Calabresa ou Muzzarella, Palmeiras ou Flamengo, analógico ou digital. Tanto faz. Senta lá e faz acontecer!”, se entusiasma Zular.

 

O conhecimento de Portela o levou a se tornar, por indicação de Clement Zular, colunista aqui do site da Revista Backstage, o que trouxe novas atividades: participar de um livro importante para a história do áudio como revisor técnico. Na Rota do Furacão, de Sallaberry, lançado em abril, conta a história do estúdio AIR Montserrat, de George Martin, incluindo detalhes técnicos de equipamentos exclusivos feitos para lá por Rupert Neve. “Tinha bastante conteúdo que um engenheiro da Neve havia me passado sobre a console Neve A4792, desenvolvida especialmente para o AIR Montserrat por Rupert Neve, e fiz a tradução para o português. Já conhecia o trabalho do Cesar Portela e os amigos da Backstage me passaram o contato dele porque eu precisava de um profissional qualificado que atuasse como um revisor técnico para publicar este conteúdo. Além de qualificado tecnicamente, Cesar é bastante articulado, tem bom texto e a minha tradução com a revisão técnica dele ficou bem bacana. É um profissional nota 10 que recomendo totalmente para qualquer trabalho nesse segmento, de eletrônica, microfones, consoles e tudo mais”, reforça o músico e escritor Sallaberry, residente na Flórida (EUA).

 

 

O analógico hoje

Ainda há, de acordo com Cesar Portela, muito espaço para o analógico. “Esses equipamentos, bem mantidos, trazem respostas de frequência, maior que 20 a 20kHz. Dessa forma, você pode perceber melhor a série harmônica dos instrumentos, e essa série harmônica é que expressa as emoções, os timbres. Como gravador, o digital é ótimo depois de um bom processamento e pré-amplificação analógico. Hoje em dia os conversores AD/DA são muito bons e, por tudo isso, penso que esse casamento entre o analógico e o digital ainda vai durar muito”, prevê o projetista.

 

 

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